quinta-feira, fevereiro 19, 2004

"Quem se eu gritasse?"


"Quem se eu gritasse, me ouviria pois entre as ordens
Dos anjos? E dado mesmo que me tomasse
Um deles de repente em seu coração, eu sucumbiria
Ante sua existência mais forte. Pois o belo não é
Senão o início do terrível, que já a custo suportamos,
E o admiramos tanto porque ele tranqüilamente desdenha
Destruir-nos. Cada anjo é terrível."

Para a Academia, Rilke não foi um existencialista. Mas, isso não importa aqui.
Se transpormos esses versos de Rilke para a finitude podemos, por certo, ler da seguinte maneira: quem, se eu gritasse, no instante das minhas sensações e percepções, que a vida está destinada à ‘morrer’, quem, nesta hora poderia me ouvir? E mesmo que pudesse ouvir, poderia fazer algo para amenizar a angústia da percepção de sentir o meu ser finito? Isto diminuiria simplesmente porque a compreendi? A sinto, a penso? Nossa única certeza: a finitude "é", oculta-se e desvela-se diante de nossa efêmera existência. Quem poderia mudar isso? E dado que mudasse, seria, nas palavras de Rilke, diante de uma existência mais forte, a substituição da consciência de finitude por um algo mais terrível. E a angústia estaria então condicionada a outra coisa que não à finitude, em todos os casos, talvez seu papel se cumprisse com o que seria o retorno do metafísico.
Mas, eis a angústia sempre presente. O verdadeiro e supremo ser-aí.

sandra & a transposição da consciência de finitude para a poesia rilkeana retirada da Primeira Elegia

"Quero viver como se o meu tempo fosse ilimitado. Quero me recolher, me retirar das ocupações efêmeras. Mas ouço vozes, vozes benevolentes, passos que se aproximam e minhas portas se abrem".

A literatura sugere imortalidade. Rilke intuiu a sua própria imortalidade em meio a toda a consciência de finitude, que invade e se dissipa pelo mundo, pelas coisas, pelos homens, sua imortalidade foi sentida e pensada também e tanto quanto outra ilusão de eternidade. Assim, nada mais que outro "objeto jogado" e condenado a um outro tipo de ilusão. Mas, contudo, ele próprio, Rilke, enquanto ser-aí, foi destinado como todos à finitude final, como todos que aí estão, como tudo que envolve e vive junto com o ser-para-si e ser-para-o-outro, por um tempo, é certo.
A literatura é uma ilusão de que se pode enganar a própria finitude.

& um fragmento rilkeano de Cartas a um Jovem Poeta Rilke