domingo, abril 08, 2007

"Estorvo" _de Chico Buarque


"À Flor da Pele" 1_

Estorvo inicia assim: "Para mim é muito cedo, fui deitar dia claro" (estorvo 1). O Poeta-Filósofo Chico Buarque, no cedo e no claro cede e diz sim à Poesia no dentro da narrativa em prosa ou um sim à Narrativa em Prosa à Poesia? Há muitas frases de beleza poética e o movimento de vida da obra passa sensações de um fluir filosófico ora contido ora não-contido, como se a personagem que abre a narrativa estivesse abstraindo o tempo todo o devir do real realísssimo que a cerca. A personagem "pensa" para si própria sem que os pensamentos sejam confessados, Estorvo poderia ser definido como um Romance Buarqueano de profundo silêncio humano a afirmar "recuo cautelosamente, andando no apartamento como dentro d'água" (estorvo 8) ou "e ele me conhece o suficiente para saber que eu poderia até receber um estranho, mas nunca abriria a porta para alguém que de fato quisesse entrar" (estorvo 9). Nas primeiras páginas senti um Chico Buarque Filósofo, não exatamente pelo que diz, também isso, mas um pouco antes, na forma como ele as construiu. POr exemplo, há uma parte belíssima em que o personagem "pensa" pelo outro personagem que está apertando em sua campainha e da qual ele tenta escapar, o livro abre já com uma perturbação, um estorvo, um algo não-desejado, diz assim: "Ele estará saltando do táxi quando bato com força e definitivamente a porta do apartamento [...] ficará desapontado por não topar comigo na portaria. Perguntará ao porteiro por mim, que estou entre o quinto e o quarto andar [...] Chego ao segundo andar e ele entrará no elevador [...] Já não tocará a campainha; desintegrará a fechadura, eu na calçada oposta" (estorvo 11) É brilhante, o personagem enquanto desce as escadas para não encontrar com o "desconhecido" fala para si no tempo presente, mas ao pensar nesse mesmo instante sobre como agirá o "estranho" fala para si no tempo futuro, "estará saltando, ficará desapontado, perguntará, já não tocará", pensar pelo outro com a convicção de que assim o é pensando no tempo não-presente, um pensar que se abstrai da partícula "se" para dar lugar ao que será... é como se houvesse um diálogo do pensamento do personagem sem as perguntas, como se as perguntas que ficam subentendidas diante das afirmativas (respostas) fossem formuladas em uma esfera do silêncio, no dentro-do-silêncio que não precisa ser expresso, coisa de Poeta? Dar-se assim no silêncio das perguntas e no não-silêncio de respostas dadas no não-presente. Poeta que jamais abriria a porta para quem de fato quisesse entrar. O silêncio como convite e a porta aberta, o sorriso infantil de Buarque e o olhar que parece ver distraído sem jamais abandonar a beleza do olhar melancólico pois um olhar melancólico seguido de outro e mais outro acaba por construir o lirismo para dentro de si enquanto o filósofo surge para arquitetar a vida real. Vi Chico Buarque Filósofo construindo um personagem que pensa nos passos em devir de outro personagem numa forma encantadora de narrar, um pensar a ligar o devir à realidade. Eis Chico Buarque completa e aturdidamente filósofo pelo pensar do personagem que não pergunta nada para si, ele antevê, seria Buarque-Poeta em sua força de Poeta a dizer: "só não olharia se soubesse que está sendo olhado" (estorvo 10), de mãos dadas com o modo-de-ser próprio da Filosofia, estaria Buarque buscando a Filosofia Tímida?, aquela que só olharia para a Poesia se não estivesse se sentindo observada, aquela que respeita o sagrado dos Poetas porque o sabe: é a Poesia que faz o verdadeiro filósofo e não o seu inverso. No pensar de Chico Buarque a Poesia estaria, assim, como a Terra para as Flores?, as Ondas para o Mar? O Filósofo que foi antes Poeta em suas sensações, foi brisa antes de ser ventania, que subiu "as encostas das prateleiras das florestas" antes de ser jardim e foi silêncio na pergunta filosófica antes de ser poesia na resposta, que "nem assim fica satisfeito com o terreno que lhe cabe, o jardim que o envolve, o limo que pega nas sapatas de concreto, a hera que experimenta aderir aos vidros e que só volta na hora do lusco-fusco parando para ver e ouvir o jogo das folhagens por atalhos que o jardineiro ignora" (estorvo 13) acima de tudo, o sabe, na Vida, toda ela e com todas as suas intensidades e sentidos, sabe que "cada folha é um exemplo de folha, com seu verde-escuro à luz e seu contraverde-claro à sombra" (estorvo 13) E é por isso que ao Ler Estorvo me sinto assim:
"Hoje é como se o Jardim estivesse aprendendo arquitetura." Hoje... é como se as Flores do Mal ouvissem "o jogo das folhagens por atalhos que os filósofos ignoram" e que os Poetas conhecem com o coração. O "jogo das folhagens" só é intuitivo poeticamente para quem tem a filosofia a olhar para a Poesia e a sorrir-lhe porque também o sabe, és sagrada, dando ao Poeta espaço e tempo. Para Ele, então, e só a Ele, é possível escutar a Filosofia sussurrando assim:
"Quando talvez precisar de mim você sabe que a casa é sempre sua..."
... bem assim.
Só para Chico Buarque.
sANdrA