quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Para Quando Houver Nenhum Abismo

Anna Karenina — Vais abandonar a literatura?
O Estrangeiro — Não. De jeito nenhum. Essência.
*
Abandono. Um sonho dentro do sono. Primeira sensação: era um lugar impenetrável. Do Estrangeiro. Essência. Ele: estado de desconforto, desliza, volta, de novo a sensação de desconforto. Abandono. Anna karenina percebe. Essência. Brinca com um chapéu preto de feltro. O lugar se torna motivo de simulacros para reter um momento em sua parte sentida como aquela que gostaria de viver uma vez mais, exatamente igual, se isso fosse possível, se a vida tivesse dado ao ser humano esta possibilidade. Nada é igual. Abandono. Não estava tudo certo demais? Essência. Um blues, um gato preto com passos leves, uma janela branca repleta de pequenos quadrados a lembrar os simulacros com a ajuda da luz que vem de fora. Tudo vem de fora? Essência. Não estava tudo confuso demais? Karenina descobre outros simulacros ao longo da noite em nomes do passado. Abandono. Diz que tem receio de transferência de simulacros. O Estrangeiro diz não ser preciso. Essência. Karenina diz, vou fazer um teste com as primeiras imagens do lugar. Essência. Nesse instante alguém grita ao longe: repetição. Abandono. Ela pensa que sim, faz sentido, repetição, diz para si mesma, talvez seja este o caminho. Essência. Mas para onde? Para as imagens suas ou do Estrangeiro? Repetição a incluir o que faltou na sua primeira existência? Um algo a mais? Na vida de quem? Do Estrangeiro ou Karenina? Abandono.
Pega um guardanapo rosa e leva aos lábios. É a cor da infância. Essência. O Estrangeiro gosta de rosa. Karenina ainda não tem certeza. Gosta ou não? Abandono. Pode ser que ame e não saiba disso. Faria diferença?
*
Se o abandono da literatura tivesse existido nestes momentos da escrita, a possibilidade destes simulacros terem passado das sensações e dos pensamentos para as palavras, ter-se-iam perdido com o tempo em sua finitude. Tudo passa. Mas eles estariam perdidos de uma outra forma: tão somente nos simulacros em lembranças. Em suas memórias, Karenina e O Estrangeiro, talvez, tenham despertado à vida o diferencial em uma repetição passada. Ficará para dizer que a cor da infância talvez seja rosa? Ficará para dizer que o abandono à literatura aumenta toda a perda da vida levada pela finitude? Ficará? Para simulacrar essências?
*
sandra & As Flutuações da Literatura