sábado, abril 09, 2005

Imaginarium


Passagem retirada do texto Imaginarium. Versão completa em www.sandraadrianafasolo.blogspot.com
[...] Chove no gramado da Antiga Casa — você está com jeito de quem sabe sugar as coisas nobres do mundo, isto o torna vivo e morto a um só tempo. Eu amo você, isso pouco importa entre nós. Precipitadas chuvas vêm e vão e entre as ruas ouve-se algo deslizar torrencialmente como se o aquário de deus tivesse se partido e espalhado seu líquido por sobre nós. Quem pisará ainda aqui? Vou sair para fora, o aquário divino foi quebrado, quero a roupa preta grudada em meu corpo e meus pés descalços e molhados e esquecendo sob eles o vacilar demasiado de meu desejo. Passará por aqui, Nihil, com os pés úmidos também? Piso nas águas dessa chuva, não é hóspede, não pode ser, eu sou. Vou com passos lentos, tudo isso me incomoda pois não conheço meu destino, sei, devemos amá-lo, nossa fatalidade é não saber onde ele está. Como ser profundo, descer às profundezas de grandes águas, sem antes ter estado em sua superfície? Será preciso ainda manter os pés na chuva? Ela vem do alto, mas eu estou aqui, ela cai, mas eu ando por sobre ela, mesmo sem saber para qual rio correrá, sinto escorrendo em minha pele. Ouço você gritar, vamos, Karenina, você já está toda molhada, por que passos tão vagarosos? Respondo rindo muito alto, meio embriagada, não sei quando deus quebrará outro aquário, se quebrará, não sei quando ele entrará de novo em suas águas, ah, Nihil, precisamos parar de imitá-lo. Em resposta você me pegou no colo e saiu correndo em direção a sua casa enquanto dizia, deus provavelmente preferiria uma metáfora melhor para movimentar sua rotina divina, a metáfora água é somente nossa e de Heráclito; deus, é claro, queria um outro tipo de prisão. ‘Shelley sentenciou, todos os poemas do passado, do presente e do porvir são episódios ou fragmentos de um único poema infinito construído por todos os poetas.’ Deus talvez fosse simplesmente um poeta que vira nos gregos o phármakon para sua divindade monótona, para ‘o poeta o real se torna insuportável’, anseia-se pela ficção e pelas loucuras do imaginário. Deus, se existe, é poeta com certeza. Mas o que ele estava dizendo? Ora, ele era cético e estava falando em um Deus-Poeta entediado com a sua realidade. Bebera demais nesta madrugada, correra com Karenina entre seus braços, sentindo seu corpo gelado e úmido contra o seu, onde em toda aquela chuva a amara mais do que qualquer coisa que já tivesse sentido ou pensado — naquele momento a amara mais do que a si próprio e, no entanto, a filosofia logo retornaria para canalizar nosso fluir a um vampirismo sempre pronto a atacar idéias e mais idéias – com muito pouco a sentir.
[...] sandra (1999-2000)