terça-feira, junho 26, 2007

Queremos o que promete mas não aparece

"Pois os olhos da alma vulgar não suportam, com persistência, a contemplação das coisas divinas" (Platão. Sof. 254 b).
Ele: "Posso esperar algo de você?"
(Anna pensando: o que será que ele tem em mente com o "algo"? Ele já possui o significado do algo pelo qual associa a esperança, o poder esperar algo de mim, tudo que ele quer é saber se o meu algo-respondido será o mesmo algo-perguntado e não sei o que responder, não sei se respondo o meu-algo ou tento outro que faça as nossas esperanças aparecerem juntas o que nos daria a ambos a sensação de destino, promessa, felicidade) Por fim respondo: Não. Isso te incomoda? "Não", responde ele. Mas - pergunto - incomodaria a qualquer pessoa com a menor dignidade que tivesse por si mesma, não te incomoda? "Não", confirma ele. Tento explicar: Eu não prometo nada. Não considero legal criar ilusões. Também não considero muito quando ouço: não deu para cumprir isto ou aquilo porque hoje fez sol e deveria estar chovendo ou hoje eu precisava sentir uma certa fleuma e tu estás a me inquietar. Não se pode querer sempre porque não se pode prometer sempre. Acho que é simples.
(Muita coisa nesse mundo já acabou pelo "algo", o "algo" não-traduzido ou sofismado pelo sentimento do medo, "algo" talvez devesse ser significado para medo)
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À noite o "algo" já terá escolhido uma cena lírica para aparecer como "o algo" prometido que não foi desejado e seguindo os passos diferentes do habitual exigirá uma substituição. Talvez viver sem amor seja mais do que banal. E, por fim, nós também continuaremos como sempre fomos, com algumas doses de esperança a menos e outras mais de ceticismo, contudo diremos com veemência (ainda que isso abale o ceticismo): queremos o que promete mas nunca aparece, "pois os olhos da alma vulgar não suportam com persistência" um algo-respondido para um algo-perguntado sem muita dignidade. Desculpe, hoje uma chuva fina e lacônica fez o mundo existir sem nenhuma aparência, nenhuma.

sANdrA & Antigas Lembranças (2002)

Ao Passante

Lembrar nega algo. Nega a vida em si. A vida, denegação do lembrar. E no caminho encontrar outras coisas. E nas outras coisas conhecer cedo a liberdade da solidão. E na solidão o caminho de não saber amar sem ficção. Negar lembra algo. Lembra em-si a vida.
...
Passado.
"Agora era fatal que o faz-de-conta terminasse assim." (Chico Buarque)