domingo, abril 29, 2007

Estorvo_"Com a pronúncia do coração"

"À Flor da Pele" 4.
(Arte de S. Zanatta)


Cap. 3_ Há dois pontos fortes neste capítulo de Estorvo, no sentido existencial do modo-de-ser do personagem e não propriamente de acontecimentos, tendo em vista a passagem de um assassinato. O primeiro é o encontro do personagem com a ex-mulher, o segundo, a lembrança do amigo-poeta. Contudo, o personagem pensa & observa muito mais do que fala ou vive, o personagem é abstrativo em dados momentos até no tempo presente da narrativa como, por exemplo, quando ele pensa sobre o singnificado do "sinto muito", que escuta dos lábios dela e diz de si-para-si: "o sinto muito vem com pronúncia do coração, e é um coração instável, o dela" (estorvo 38) Ou como na página anterior em que há uma crueldade no seu pensar passando no lado oposto de sua sensibilidade poética. Essa alternância, às vezes, passa uma sensação de surrealismo-existencial, em outras, a sensação é de realidade, daquela realidade que nos choca "por dentro" ao vermos que o "por fora" não poderia ter recebido uma observação tão justa. A crueldade eventual de quem diz, novamente, de si-para-si: "Mas em vez de apreensão ou pânico, ela faz cara de desgosto, como se morrer fosse sujo." Porque ele espera de quem o amou há
anos atrás "apreensão ou pânico" e "vê" que o amor não mais sentido traz outros sentimentos "como se morrer [ou deixar de amar] fosse sujo", como se o desgosto pelo talvez não mais-estar-aí viesse a se tornar também uma espécie de estorvo. Somente as passagens líricas soam a ele como vida-sem-desconforto?, como "banhos lacônicos", "eu, por mim, levava no vapor o resto da existência." (estorvo 51) Talvez essa seja a pronúncia do seu coração, levar o resto da existência com o conforto dos banhos lacônicos dos antigos & a lembrança do amigo-poeta a recitar poemas em francês, fazer premonições, dizer coisas "por fora" do tempo, onde a realidade do agora, ao escutar o que estaria ainda por vir, não pensaria nem em surrealismo nem em crueldade, ainda que justa, declamaria, quem sabe, junto ao amigo-poeta poemas em francês juntando-se a eles não seriam somente os dois na mesa de um bar, "porque as poucas pessoas que suportam poesia, não suportam francês" (estorvo 43)
"Não sei o que essas pessoas pensavam de mim, do meu amigo, da nossa amizade. Mas quando ele estava lúcido, e falava coisas que para mim eram revelações, os outros mal ouviam, olhavam-no com a fisionomia embaçada. Era como se estivessem separados dele, não por uma mesa, mas por camadas de tempo. Às vezes eu achava que ele preferia mesmo dizer coisas que os outros só pudessem compreender anos depois. [...] Ele era dessas poucas pessoas que sabem pensar e falar com o tempo dentro" (estorvo 44). Assim também o personagem, ou muito muito além de seu amigo-poeta, a "pensar e falar com o tempo dentro", a sentir e a viver com o tempo dentro. Estorvo talvez pudesse ser definido por essa passagem do amigo-poeta, uma narrativa que olha para o mundo e seu movimento com o olhar embaçado, olha pelo olho mágico, sempre olhando através de... como se houvesse uma película a impedir a passagem total do olhar/viver, então obriga o retorno sem ter concluído o instante de Vida. Pensar e falar com o tempo dentro como quem recita Poesia, toda a realidade está ali, mas a realidade mesma, ela própria, devolve ao poeta a fisionomia embaçada do que seja o Mundo. Lembra muito de perto o Albatroz de Baudelaire, o amigo-poeta que vê ao longe teria recitado o Albatroz em francês?
"O Poeta se compara ao príncipe da altura Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar Exilado no chão, em meio à turba obscura As asas de gigante impedem-no de andar." (Baudelaire) O amigo-poeta como um Albatroz?, ou o próprio narrador-personagem de Estorvo? Que na altura de seu mundo bipartido, enfrentaria, nestes momentos de criação, "os vendavais" e riria da "seta no ar". No entanto, vê-se condenado_ exilado_ à "terra" e voltando obrigado ao seu exílio_a realidade mesma_ vê que suas "asas" o impedem de andar/viver como julga que um não-poeta viveria. Pelas asas gigantes alcança as alturas, mas elas o impedem de andar, não foram feitas para o exílio/realidade, aqui nada podem, é a fragilidade da força do poeta. Seu tormento, ver alto e não poder estar nas alturas a não ser por pouco tempo, seu exílio, a própria vida sem poesia, o existir-cotidiano a se alternar com o não-exílio das alturas_ assim, o personagem de Estorvo, exilado da realidade no conforto de seu pensar, no lirismo alternado com o cotidiano que lhe soa insuportável, ri da seta no ar, mesmo impedido de andar/viver. A condenação do poeta é saber da fisionomia embaçada de quem não sente a vida "com o tempo dentro". Daí a admiração pelo amigo-poeta. A insistência do personagem em ir para lugar-nenhum, dada a oscilação entre a vida cotidiana (seu estorvo maior?), e a Poesia que passeia pelos seus pensamentos mas que, no entanto, abraça apenas com suas lembranças, não será suficiente para que ele olhe para qualquer coisa que seja, qualquer coisa a inspirar Vida, com "a fisionomia embaçada"_ jamais.

Talvez a Poesia seja simplesmente isso: apenas lembranças metaforizadas, talvez o personagem o saiba, talvez, no fundo, ele receie as metáforas, talvez ele pense que elas possam mais tarde embaçar o olhar, deixar a fisionomia igualmente embaçada, talvez ele tenha medo do efeito rebote que o rir da seta no ar possa lhe trazer num tarde, muito mais tarde, naquele tarde em que "pensar e falar com o tempo dentro" já não pode mais ser sentido como tal. Então, ele seguirá, indo para nenhum-lugar, como o Albatroz?

sANdrA & as sensações do 3 capítulo de Estorvo