sábado, outubro 22, 2005

o brilho-outro do olhar de diadorim em imagens de deslembro

_ o lado "outro" de imagens que vêm construídas pelo deslembro_
Diadorim tinha luz. by Riobaldo

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Anna Karenina & Riobaldo dialogam sobre Grande Sertão: Veredas

Diálogo 1_ Hume salvaria Riobaldo de um julgamento defeituoso em relação à Diadorim?
Anna K._ Melancólico, hoje, Riobaldo? Riobaldo_ Só 'tocando o céu com os olhos, Anna, ‘inda fico pensando, a ida para o céu é demorada, antesmente disso tem um porém, num dá não de tocar o céu com a ponta dos dedos. Num dá pra tocar, Diadorim era minha neblina... Agora, bem: não queria tocar nisso mais.
Anna K._ Acredita que tocar o céu com os olhos é uma forma de sentir o mundo empiricamente?
Riobaldo_ Nonada, Anna. Olhar engana no sertão. A gente enxerga aquilo que deseja enxergar. Mas cada um só vê e entende as coisas dum seu modo. Tocar o céu é só uma impressão que volta na idéia, o “céu” depois volta modificado, ‘cê sabe, idéia vai ajudando, vai na mente e vai que não tem céu não, essa imensidão azul só imaginação, ‘inda mais no sertão. Já a neblina, toquei num foi só com o olhar não, neblina toquei com o coração e com o silêncio de Diadorim, ela gostava de silêncio.
Anna K. _ Não entendo, há pouco você dizia que idéia vai na mente, tudo é um produto da mente?, agora parece se aproximar de Hume. Você me confunde, assim, Riobaldo, num dia está para Nietzsche, noutro para Platão, quero dizer, numa página você “é” humeano, em outra platonista, em outra aristotélico, idealista alemão, heideggeriano, e por aí vai, parece mesmo com ‘aquele’ céu tocado numa primeira impressão só com o olhar e que quando retorna produz na imaginação um outro tipo de ‘toque’.
Riobaldo_ Sim, Anna, o outro céu, aquele que retornou depois, me veio pela idéia que ia ajudando ajudando, ia na mente, foi de ver neblina em céu azul, por isso, Diadorim, minha neblina em forma de céu-outro. Minha idéia em forma da primeira impressão divergia. Minha idéia em forma de neblina foi por conta do depois. Assim é a vida. Lembro deslembro.
Anna K._ Não consigo vestir tudo isso dentro de minhas sensações e percepções, eu sou simplesmente uma adoradora de abstrações e palavras. Você parece diferente. Leva tudo isso no coração, Riobaldo?
Riobaldo_ Não só, no coração, nas sensações e no pensar. Eu era diferente de todos eles lá no sertão. Sabe, Anna, quando a gente sente, e a gente é fiel ao que sente, o pensamento acompanha o coração, as sensações e as percepções; se você não é fiel a tudo isso o pensamento dirá outras coisas para você e as palavras ditas uma terceira idéia e sua expressão no rosto enquanto estiver falando dirá então uma quarta, tudo que é certo pode se tornar tudo incerto, pode até ser que chore, de medo mau em ilusão, como quando foi menina. Quando digo que devia ser assim, idéia vai na mente com ajuda saindo do coração, se prolonga. Hoje tô mesmo para Hume, sendo fiel ao ‘riobaldo’ que tem saudade de coração, desejando tocar o céu com a pele. E você, Anna?
Anna K._ Só 'tocava' você com meu olhar, Riobaldo, aí pensativo, olhando para o ‘seu-céu-personalizado’ em densas neblinas. Tentando entender o seu modo existencial e singular de ser — o modo-de-ser-riobaldiano —, seguindo pegadas invisíveis nas páginas do livro e nos nossos bate-papos nas madrugadas. Acredito que nos falamos pelas entrelinhas de GSV, o que vejo lá vai na minha mente e vem para cá, mas não tenho como saber em que parte são só impressões de sensações e percepções_ diretamente colocadas em palavras_ e que partes ficam nessa travessia para idéias que podem ser mais incertas ainda a cada retorno. Acho que não entendi Hume direito, mas você está certo, tudo certo, tudo incerto serve bem para definir Hume. Por isso, gosto de conversar com você, Riobaldo, confirmar algumas coisas sentidas e outras pensadas. Assim é a vida?
Riobaldo_ Nonada, Anna. Não é bom confirmar através de sabença aprendida. Esqueceu da primeira lição riobaldiana? Num serviu de nada aquela nossa conversa sobre isso. É... sabença aprendida também não serviu de nada pra você.. Quando eu disse isso estava de cara com os bebelos, um bom exemplo de gente empírica, quase que ponho Zé Bebelo em julgamento nas minhas idéias sô. Já viu? Depois, pensei, esse tal de Hume tem lá sua sabedoria, pena que não vivia no sertão com a gente, pois então, pensei, tudo que havia aprendido sobre Diadorim na vida real, ali, em meio ao sertão, tudo que era idéia não vinda só do coração, fez de meus julgamentos, defeituosos. É porque idéia vem depois e o depois é sempre passado e como aquilo que a gente julga é sempre o passado, como um lembrar-de-sensações, então, o julgamento é sempre defeituoso. Quando se lembra se tem uma idéia e essa idéia não é mais a sensação, é sensação deslembrada. Então, lembro deslembro. Como tocar o céu com o olhar depois com idéia que fica na mente. Essa conversa que principiou com a impressão do céu virou passado. O real é deslembro agora, digo, o céu é deslembro do lembro. Não sei se é possível não deslembrar algo ao se lembrar deste mesmo algo. Viu já tudo que falamos? Céus-outros. Com Diadorim não foi diferente, eu não tinha todo o empírico da situação, ‘ce sabe... Hume me pegou por aí, tivesse sido humeano só na primeira parte do empirismo eu teria visto quem Diadorim era antes de ficar com idéias que iam na mente, mas estas não tinham saído do coração, sei lá de onde vinham, era sabença aprendida e acreditada no sertão, dessas que passam de jagunço para jagunço. Por conta disso, de não ter olhado para a primeira parte do empiricismo, Diadorim foi minha neblina. Os bebelos que eram seguidores humenianos de verdade, ficavam só com o momento, não era no divago não. Num vi o céu, vi neblina o tempo todo acreditando que era não. São os momentos da vida que nos levam para caminhos incertos, a gente pensa que não, tudo certo, tudo incerto.... sabença aprendida de Hume veio muito tarde, tivesse vindo antes, não sei se também se servia dalguma coisa, é porque é teórica também essa sabença vindo dele, num ‘dianta de nada. Saudade de coração é sabença certa. Saudade de idéia deixa a vida assim. Só no deslembro. Tudo incerto.
Anna K._ O deslembro seria uma tentativa de repetição do vivido? Saudade do vivido?
Riobaldo_ Mais que isso, Anna. Eu possuía uma repetição que sempre outras vezes em minha vida acontece, eu atravesso as coisas_ e no meio da travessia não vejo! — num adianta tocar o céu com os olhos quando no meio da travessia estamos com o olhar voltado para as idéias. Num dá para atravessar [viver] ao mesmo tempo que a gente tenta “ver” as idéias porque enquanto você atravessa e as idéias estão lá na mente, ajudando, num dá para ver o mundo real de verdade, idéia que vai na mente desvia de sensações e percepções, divago distorce a vida. Por isso Diadorim, minha neblina. Minhas impressões de Diadorim foram de um jeito, idéias de outro. Serviu algum? A neblina vinha da idéia vinha não de sensação. E coração não tá na idéia não, saudade de coração está na primeira vez de tudo. A gente sente mais é o que o corpo a próprio é: coração bem batendo. Do que o que: o real roda e põe diante. — Essas são as horas da gente. As outras, de todo tempo, são as horas de todos. —
*
pensamento solto de sandra_ sobre o valor da travessia sem que seja uma travessia-com-idéia-que-vai-na-mente [o teorizar] Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Riobaldo. (...) Quando eu sonhar, será um sonhar com aquilo. Cheiro de campos com flores, forte, em abril. [...] No sonho estarei lutando contra o lembro e o deslembro e é exatamente isso que fará de meu sonhar um aquilo inundado no valor do instante. O deslembro também devia ser desvio de vida-vivida, como a recordação em Bergson ou o tempo perdido em Proust, o deslembro é um efeito do lembro riobaldiano, o lembro é um efeito de momentos vividos, mas já pertencentes à finitude da realidade, porém não às idéias continuadas na mente. Havia o fim em ambos, apostava seus olhos fixos no céu de Riobaldo que ele sabia disso o tempo todo, há um morrer infinito da vida que vem pelas idéias do passado, é sempre aquele julgar defeituoso o lembrar da própria vida. O ponto decisivo à profundidade da vida em sua simplicidade está na travessia. É o sertão, sertão, o momento. O momento tem seu valor mais forte antes de qualquer possibilidade de lembro deslembro. Por isso, viver é perigoso, os passos dados para trás [o lembro e o deslembro[1] do pensar em forma de recordação] tornam a existência o desvio dentro dela mesma em sua travessia continua. Este é o viver mais perigoso: do pensar, das abstrações, do viver imerso em teorias. É o efeito do ponto difuso do pensamento, de idéia que vai na mente, theoria, outro nome para neblina, qualquer que seja, com a possibilidade de desviar o ver do real durante a travessia. Travessia: o instante. Assim é a vida? Não, assim deveria ser a vida também em meio ao teorizar, mas a impossibilidade de se viver com profundidade esse paradoxo da existência impõe uma escolha a todo instante. Viver é muito muito perigoso mesmo. Ainda bem que você, Riobaldo, era o único filósofo no sertão. Não é à toa que havia em você medo dos seres humanos.
* sandra & os diálogos com Riobaldo_ suave e raro Riobaldo
[1] Vejo nestes termos riobaldianos algo que envolve uma espécie de representação, esta não está na primeira vez de algo “visto”, mas no pensamento/idéia trazido de volta contínuas vezes deixando o momento original da vida imerso em neblina, uma outra palavra, talvez, para teoria, idéia que vai na mente.