terça-feira, novembro 16, 2004

Flutuações da Vontade

& um breve comentário sobre o modo de se expressar paradoxal de Cioran
E. Cioran. In: Breviário da Decomposição
"Conheces essa fornalha da vontade na qual nada resiste a teus desejos, onde a fatalidade e a gravidade perdem seu império e volatilizam-se ante a magia do poder? Certo de que teu olhar suscitaria um morto, de que tua mão posta sobre a matéria a faria estremecer, de que a teu contato as pedras palpitariam, de que todos os cemitérios floresceriam em um sorriso de imortalidade, repetes a ti mesmo: de agora em diante só haverá uma primavera eterna, uma dança de prodígios e o fim de todos os sonos. Trouxe um outro fogo: os deuses empalideceram e as criaturas se regozijam; a consternação apoderou-se da abóbada celeste e a algazarra desceu até as tumbas.
... e o amante dos paroxismos, sem fôlego, cala-se um instante para proferir, com tom de quietismo, palavras de abandono: " experimentaste alguma vez esta sonolência que se transmite às coisas, este rancor que torna anêmicas as seivas, e as faz sonhar com um outono vencedor das outras estações? À minha passagem, as esperanças adormecem, as flores murcham, os instintos enfraquecem: tudo pára de querer, tudo se arrepende de haver querido. E cada ser me sussurra: gostaria que outro vivesse minha vida, fosse deus ou uma lesma. Suspiro por uma vontade de inação, um infinito em suspenso, uma atonia extática dos elementos, uma hibernação em pleno sol, que entorpeceria tudo, do porco à libélula..."
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Cioran aborda neste fragmento um tema bastante conhecido entre os filósofos que o precederam, em Schopenhauer a Vontade transforma-se em Representação para em Nietzsche ser Vontade de Poder da própria Vida. Embora o filósofo romeno possua nítidas influências nietzschianas não aborda a Vontade sob um prisma essencialmente nietzschiano, há algo no texto de Cioran que se 'desvia' para um outro querer-dizer, talvez sua própria vontade de expressão, paradoxal. Há na forma como escreve uma linguagem refinada associada a uma linguagem que, por outro lado, também nos choca. Ele mistura: vontade, fatalidade, magia, poder_ palavras com doses de sedução_ com frases belíssimas como "todos os cemitérios floresceriam num sorriso de imortalidade" para quase-finalizar o texto com 'lesmas' e 'porcos'_ imagens nada refinadas ou sedutoras para nosso imaginário_ e, então sim, finaliza o referido fragmento com 'libélula', realmente uma palavra para despertar sensações flutuantes, como o subtítulo indica ao leitor. Esse modo-de-ser-paradoxal de Cioran, revelado através da linguagem, encanta, desencanta, soa suave, soa não-suave, minhas sensações ao lê-lo são de oscilação, como a imagem do escrever cioraniano, mas como uma coisa não exclui a outra, "a outra" não exclui uma "coisa", coisa sentida, respondendo à pergunta de Cioran: "experimentaste alguma vezes esta sonolência que se transmite às coisas?" Diria a ele: Cioran, para a sensação que nos passam suas metáforas de imagens, a resposta é não, porém para o amanhecer que experienciamos todas as manhãs, sim, sinto por vezes uma grande sonolência em relação às coisas que vêm para nos despertar pela manhã e que nos conduzem a um outro estágio de sono, aquele próprio de uma doença que poderíamos chamar de narcolepsia-incurável-existencial. Acho que me compreenderias muito bem, um certo entorpecimento da vontade da humanidade em não ter vontade de sonhar com um outono vencedor de todas as outras estações ou, quem sabe, não desejar sonhar com uma noite, uma única apenas, que compensasse todos os dias vividos de profunda sonolência como se não tivessem sido o que foram.
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sandra & as Ilações & Concordâncias com o (Não)-Entorpecimento Cioraniano