domingo, junho 24, 2007

"E dou risada do grande Amor... mentira"

Estou na parada de ônibus em Santo Antonio de Lisboa, escrevo no diário que sempre levo na bolsa. Um senhor chega de repente, senta e interrompe o que eu estava para escrever. Diz que morou oito anos na Itália, foi casado com uma italiana, "sua desgraça", conta. E conta para mim que não o conheço. Penso em perguntar se "sua desgraça" foi ter amado, ter amado por muito tempo ou por ter amado a italiana em especial. Mas ele não me dá tempo de fazer perguntas, fala como se eu fosse alguém para quem ele contaria sua vida sempre que nos encontrássemos em paradas próximas ao mar, à maresia, a esse estado de espírito que a Ilha em si nos leva de forma suave. Suave até no narrar antigas lembranças para estranhos. Estranho. Venho de um lugar em que falar sobre a própria vida é algo somente para amigos de muitos anos, aqui é tão diferente, as pessoas contam suas vidas com naturalidade como se o movimento natural das ondas impregnasse a vida em todos os sentidos. Ele continua falando, mistura passeios com discussões como se alternasse beijos e palavras ou como se lesse Marguerita Duras numa versão contrária. De repente percebe que trago um livro em mãos e pergunta sobre o "livro", confunde meu diário. Digo que é Marguerita Duras, que a capa está refeita porque fora comprado num sebo em Porto Alegre e que um amigo costumava enviar livros de lá pois aqui é difícil comprar livros que possuam passado. Passado?, pergunta ele. Sim, respondo, livros de sebos têm passado, os novos são insípidos até que a leitura nos envolva. Leitura?, só leio minha vida, diz ele. Eu digo a ele que é o melhor começo e a melhor leitura: ler a própria vida. Mas com isso devolvo à sua lembrança a "sua desgraça", pois ele volta a falar nela. Sinto-me um pouco cruel por ter feito isso. Digo a ele que não gosto de nada que não possua passado e que, por isso, não curtia muito as crianças pequenas, elas ainda não têm passado, só serão interessantes depois que deixarem de não ter passado. Mas ainda me sinto como uma criança de vez em quando. Ele diz que "sua desgraça" tinha um sorriso infantil, ela parecia com isso que você acabou de falar, ela não tinha jeito de quem tem passado. Pessoas assim são difíceis de amar. Talvez eu também não goste de pessoas ou coisas sem passado, finaliza com o tom de voz da finitude, embora ele não o saiba possui o som da finitude em seus lábios. Penso que pessoas com o som da finitude são as que ficam para sempre em nosso coração. Sinto vontade de escutar Chico Buarque, canta com lábios de finitude, de todas elas e nos faz ter vontade de sermos melhores como seres humanos porque canta a finitude do amor. O Senhor me desperta da divagação buarqueana, levanta e sai caminhando, sequer iria pegar realmente um ônibus. Acabou por me lembrar dos gregos, não possuíam em si a vergonha de mostrar sua própria dor, não dissimulavam suas perdas, pelo contrário, raspavam o cabelo para dizerem que estavam naquele instante com uma profunda dor que deveria ser respeitada em silêncio por quem a visse. Que elevado, não ter vergonha de ver no olhar alheio algo do tipo: "mas, eis, estás a sofrer". A maior parte das pessoas dissimula sua dor e o faz até que a dissimulação consiga convencer de que ela também se engana e, por vezes, se encontra no sentimento e na pessoa errada. Como num dia de vento sul a dor não era minha. O Senhor de Santo Antonio de Lisboa, o não-dissimulador de suas dores, quem sabe, dissimulasse sua felicidade. Lembro de Kant, do Espaço e do Tempo que já estão dados, quem sabe o Espaço seja a Felicidade, o Tempo seja a Dor, já estão dados pela Vida que se esvai pelo mundo, cada um com seu "espaço" e "tempo" personalizados, dissimulados, escravizados. Doce intuição kantiana. O Tempo torna-se pela salvação já dada a salvação pelo eterno retorno. Penso no "início da leitura" do Senhor e "sua desgraça" e me sinto ludibriada junto com ele, em uma sensação confusa me uno a ele em pensamentos, uma vida inteira não seria suficiente para se ver essa mesma vida, senti-la ou compreendê-la, os segundos, todos eles somados um a um se perdem junto à finitude e suas possibilidades, sim, uma vida não seria suficiente para a maior parte das pessoas, soterradas em um ir-e-vir de milésimos de instantes afundados em tudo que junto com eles passa e continuará a passar. Passamos todos e ao mesmo tempo jamais. Jamais nos cansaremos desses instantes imersos na finitude, pois eis que são eles a própria vida e assim como a Devoção ao Tempo & ao Espaço nos faz a cada dia um pouco mais submersos em contrapartida nos vemos como náufragos fora do mar. E não entendemos a vida, não entendemos nem mesmo o "nada", apenas usamos a esfera do nadismo como conforto para o não-entendimento, simples como o Senhor de Santo Antonio de Lisboa_ e então "não sei bem se por ironia ou por amor", descubro na finitude um estar-submerso fora do Mar. "Hoje eu tenho apenas uma pedra no meu peito, exijo respeito não sou mais um(a) sonhador(a)... e dou risada do grande amor... mentira." Eis os versos que os gregos aplaudiriam no final e Lautréamont lembraria: "Toda a água do Mar não bastaria para lavar uma mancha de sangue intelectual."
sANdrA & O Desconhecido em S.A. Lisboa