terça-feira, maio 19, 2009

'Prolegômenos' a cerca das pieguices & das gírias

(aos *piegantes e giriantes*)
Dos anteprolegômenos:
piegas
:
s.f. (de origem obscura) diz-se de quem se embaraça com bagatelas, que é ridicularmente sentimental, comove-se à toa. piegueiro: dócil, meigo, acariciador, acariciante, caricioso, pieguice: qualidade de piegas (Aurélio). pieguice. s.f. niquice, pieguismo, sentimentalismo, sentimentalidade (Houaiss)
gírias: s.f. calão, dialeto, geringonça, jargão, patoá, linguajar, artifício. (antônimo para gíria: franqueza, honestidade, lisura, seriedade, sinceridade (Houaiss)

(talvez desse para incluir aqui “pieguice” como antônimo de “gíria”)
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Diferentes tipos de 'pieguices':
Como falar sobre ‘pieguice’? O melhor é ir ilustrando com lembranças. Quem nunca foi chamado de ‘piegas’ em algum momento de sua vida? O que daria um livro bem bacana: descrições piegas-pegas de passantes das grandes capitais reunidos num livro sob o título: todos temos nosso momento maior de pieguice, leia aqui 1000 confissões sobre o tema que envergonha a humanidade.
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Ilustração 1: uma vez fui chamada de piegas por um paulista, onde eu fazia aulas de dança de salão, por ter dito que adorava as músicas de Chico Buarque. Na representação dele a palavra ‘piegas’ incluía o maior músico da nossa história, o que achei um absurdo. E que me fez pensar que ‘pieguice’ para ser definida é preciso antes que se ‘defina’ a vida de quem está incluindo pessoas e coisas como forma de ilustrar o que seja ‘a sua pieguice’. Como tudo nesta vida, este termo depende de como é entendido ou vivido. Termo que me incomoda bastante porque para quem não ama poesia ‘pieguice’, às vezes, tem a ver com versos sobre o amor, o mar, as estrelas, o céu... sendo que, no final das contas, tudo converge para ‘amor’. O amor seria então a causa primeira da existência das pieguices? O culpado é sempre o amor, tanto das alegrias quanto das mazelas humanas. Mas serei eu muito tola? Não entendo porque o amor tenha que ser visto como ‘pieguice’. Não acredito que nada de belo possa ser produzido sem amor, que um músico ou um artista de pincéis e cores ou um filósofo que vive a “tossir tinta” não possua uma dose de amor pelo que realiza. Que um pescador não ame o mar, não quero crer que seja assim. Como escreveu o Paiva numa de suas crônicas: “o amor é importante, porra!”
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Ilustração 2: tenho para mim que os maiores ataques aos piegantes (aqueles que vivem-vivendo-pieguices) têm origem nos giriantes (aqueles que vivem-fugindo-das-pieguices). Já repararam nas diferenças entre uns e outros? Nunca fui adepta de gíria, não me atrai. Uma professora certa vez, já bem de idade e meio por fora do “estar ligado” pediu que todos do curso fizessem uma lista das gírias que conheciam, fiz uma lista enorme. Ela se surpreendeu, “mas você não fala nenhuma dessas palavras”. Eu: “não falo, mas não significa que eu não ouça o que as pessoas falem, apenas que não gosto, embora use uma ou outra, que já não são mais gírias de modismos por terem se incorporado à linguagem sem substituição rápida”. Ela nem perguntou porque eu não gostava das gírias, adotou todas.
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Ilustração 3: como naquela frase que o mundo conhece bem: “uma andorinha só não faz verão”, de Aristóteles, está na Ética a Nicômaco. Talvez os provérbios sejam as gírias que permaneçam com algum fundo que vale a pena ser pensado e pronunciado e, por isso, se perpetuam. Não gosto de gírias porque (pode até ser pedante) é como se o giriante (aquele que faz uso de gírias, sim?) girasse o tempo todo sobre uma linguagem que corre atrás para possuir e não consegue e de gíria em gíria vai-se indo... é como não ter uma linguagem sua, é como não ter um ser próprio de linguagem. Sei que alguém poderá argumentar que a linguagem, num tour de force, pode ser pensada toda ela como uma gíria desde que não fui eu que a criei, nem eu nem você nem ninguém que a usa hoje. Sabemos, quando aqui chegamos no mundo a linguagem que iríamos aprender já estava determinada (isto é Heidegger, que usou uma única expressão-gíria em todos os seus textos, a saber: “a saber”); essa linguagem que já está dada quando aqui nascemos, não seria o catalão, nem o russo, nem nada nem não, seria o português. Contudo, é possível escolher as palavras que desejo para mim e como as ‘ligo’ ou significo ou resignifico vem a ser a minha liberdade lingüística de formar o meu mundo de palavras. Os giriantes não se preocupam com isso, desde que alguns da tribo entendam o significo o resto do mundo que se dane, mas se a tribo se dispersar eles ficam perdidos em sua linguagem descartável. E ainda podem contradizer com: somos os únicos que ainda criamos novas palavras. Pois sim...
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Ilustração 4: Há diferença entre lirismo e pieguice e são muitas. Prefiro trocar a palavra pieguice por lirismo equivocado por que dá a entender que existe um lirismo em potencial e que só momentaneamente ele está meio assim fora de época, que esse lirismo pode vir a ser algo de belo para alguém. E até mesmo o ser mais piegas pode ter algo de belo para oferecer ao mundo. Agora, as gírias, as gírias, são sempre para juntar rebanhos ao redor de um chão nada sólido, é o lugar da preguiça e do rebanho. Nietzsche por certo sabia disso do contrário em vez de filólogo teria se preocupado em doutrinar rebanhos através de gírias. Além do mais, Nietzsche também deve ter captado que numa 'tribo' haverá o que assuma o papel de 'senhor' enquanto todo o resto faz o papel de 'rebanho', pois sempre haverá aquele que reprimirá o rebanho por estar atrasado com sua linguagem-giriante.
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Ilustração 5: “tu não te moves de ti”, César citando Hilda Hilst. Não Cês, eu me movo de mim, mas antes de me mover ao exterior ‘indo como todos vão’ faço um esforço contínuo para me mover para o interior ‘indo como sempre tenho ido’ e escolhendo a linguagem que sinto poder me levar para mais além. César me ensinou muitas sutilezas sobre a linguagem, ensinou sem ensinar, entendem? Apenas sendo quem ele é com sua linguagem impecável, escolhida por ele. Acho que ele nunca escreveu uma gíria sequer ao falarmos e foi a pessoa mais impressionante que encontrei em termos de linguagem. Não exagero, Cês é espantoso com as palavras. Acho que ele também sente que giriar é preguiça de se expressar e escolher sua própria linguagem. Entre giriantes, falantes, e piegantes, fico eu, assim, numas de sentimentalismos com a linguagem porque nem todos vêm ao mundo para fazerem verão. Alguns vêm para fazerem outras estações. Que Aristóteles me perdoe, há que se ter de começar com outras estações. Voilà! Beirut, “que comecem as estações”.
* Ilustração-maior: melhor argumento empírico e que se perpetuou ao longo de séculos e séculos dos séculos: alguém por acaso já viu gíria em epitáfio?
* beijos beijos
sandra ádria_na
A imagem original é: "você está aqui". Mas julguei que ela merecia uma inversão para se adaptar aos filósofos. Por isso,

"você não está aqui"

A minha impressão inicial a partir da imagem original foi: mas eu nunca "estou aqui", o presente não é muito o meu tempo, o tempo do pensamento e mesmo de várias sensações. A 'afirmação' me lembrou de que 'estar aqui' é perfeita para a fenomenologia, Husserl ou Heidegger poderiam ter saído às ruas distribuindo esse mimoso selinho: veja, é aqui que você está, e no instante seguinte, de novo, é aqui que você está, e no instante seguinte, de novo, pô, já disse, é aqui que você está! (... sem fim) E aquela frase que os filósofos adoram: "sabe o que é o tempo?", é o agora, mas o agora já passou", talvez ficasse melhor em Sartre, você está aqui e sua náusea agora é que é aqui, e no instante seguinte de novo, "sua náusea novamente aqui", e de novo e de novo, um estar aqui seguido de milhões de 'náuseas' que no seu conjunto deve significar aquela outra frase célebre, o inferno são os outros (e se os outros são do tipo que estão mesmo sempre "aqui" se tornam mais infernais ainda). Os filósofos são criaturas das mais estranhas para serem compreendidas e também para serem felizes, são tantas as razões, tantas, o que daria uma pesquisa e tanto. Mas, o fato é que mesmo a frase na sua versão original de se "estar aqui" sendo uma perfeita afirmação para o existencialismo ou antes ainda, à fenomenologia, ainda assim, nem Husserl, nem Heidegger e nem Sartre estiveram "aqui" tanto quanto quiseram parecer que pudessem estar, a razão é que para disseminarem o selinho-existencial precisaram pensar e escrever durante uma vida inteira e aí sim, estender ao mundo a ideia de que ter consciência de que é aqui que se está é muito mais importante do que: 'um dia você estará em outro mundo, melhor que este em que vivemos, mais justo, delicado, transcendente, quem sabe?' Eu, se fosse adoradora dessa filosofia estamparia o "você está aqui" numa bela tatuagem onde eu pudesse ver e ler na minha própria pele todos os dias. Mas, eu não esqueceria de tatuar o seu inverso: você não está aqui, como forma de lembrança para o fato de que a filosofia qualquer que seja implica em pensamento, um pensamento que é sempre solitário onde há um diálogo consigo e com um autor (quase sempre já morto há muito tempo) que beira às vezes a algo insano. Quem se deixa conduzir pela filosofia terá muito mais momentos de "você não está aqui" do que de "você está aqui", porque como naquela antiga e sábia outra afirmação, "os deuses vendem quando dão", e se dão certo talento para abstrair, logo, em seguida, marcarão a testa com o sinal de "você não está aqui", pensamentos não, corpo sim. É o velho problema do dualismo filosófico a se perpetuar silenciosamente em cada mente filosofística e não há quem perceba que os filósofos estão sendo traídos pelo seu próprio pensar? Contudo o ainda metafísico dirá: que felicidade, eu acordo todo dia e sinto que os deuses me sussurram: "você não está aqui", e me sinto feliz, é um sinal, sim, é isso, é um sinal, um sinal de esferas outras dizendo que estou no caminho certo e lá vou eu abstrair como forma de não ficar por aqui por muito tempo. A vida é preciosa, por isso é que mesmo que eu seja fenomenóloga (o) cantarei: "eu não estou aqui" e vivo este momento lindo. Mas, um poeta sorrirá placidamente e em sua 'sabedoria vegetal' não dará atenção nem ao "você está aqui" nem ao "você não está aqui", porque um poeta para estar, sentirá a Vida assim:

"a voz de um passarinho me recita" *

Deseja algo mais divinante e vivo que estes versos para você ficar aqui?

(Manoel de Barros. Concerto a céu aberto para solos de ave**)....