(aos *piegantes e giriantes*)
Dos anteprolegômenos:
piegas: s.f. (de origem obscura) diz-se de quem se embaraça com bagatelas, que é ridicularmente sentimental, comove-se à toa. piegueiro: dócil, meigo, acariciador, acariciante, caricioso, pieguice: qualidade de piegas (Aurélio). pieguice. s.f. niquice, pieguismo, sentimentalismo, sentimentalidade (Houaiss)
gírias: s.f. calão, dialeto, geringonça, jargão, patoá, linguajar, artifício. (antônimo para gíria: franqueza, honestidade, lisura, seriedade, sinceridade (Houaiss)
(talvez desse para incluir aqui “pieguice” como antônimo de “gíria”)
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Diferentes tipos de 'pieguices':
Como falar sobre ‘pieguice’? O melhor é ir ilustrando com lembranças. Quem nunca foi chamado de ‘piegas’ em algum momento de sua vida? O que daria um livro bem bacana: descrições piegas-pegas de passantes das grandes capitais reunidos num livro sob o título: todos temos nosso momento maior de pieguice, leia aqui 1000 confissões sobre o tema que envergonha a humanidade.
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Ilustração 1: uma vez fui chamada de piegas por um paulista, onde eu fazia aulas de dança de salão, por ter dito que adorava as músicas de Chico Buarque. Na representação dele a palavra ‘piegas’ incluía o maior músico da nossa história, o que achei um absurdo. E que me fez pensar que ‘pieguice’ para ser definida é preciso antes que se ‘defina’ a vida de quem está incluindo pessoas e coisas como forma de ilustrar o que seja ‘a sua pieguice’. Como tudo nesta vida, este termo depende de como é entendido ou vivido. Termo que me incomoda bastante porque para quem não ama poesia ‘pieguice’, às vezes, tem a ver com versos sobre o amor, o mar, as estrelas, o céu... sendo que, no final das contas, tudo converge para ‘amor’. O amor seria então a causa primeira da existência das pieguices? O culpado é sempre o amor, tanto das alegrias quanto das mazelas humanas. Mas serei eu muito tola? Não entendo porque o amor tenha que ser visto como ‘pieguice’. Não acredito que nada de belo possa ser produzido sem amor, que um músico ou um artista de pincéis e cores ou um filósofo que vive a “tossir tinta” não possua uma dose de amor pelo que realiza. Que um pescador não ame o mar, não quero crer que seja assim. Como escreveu o Paiva numa de suas crônicas: “o amor é importante, porra!”
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Ilustração 2: tenho para mim que os maiores ataques aos piegantes (aqueles que vivem-vivendo-pieguices) têm origem nos giriantes (aqueles que vivem-fugindo-das-pieguices). Já repararam nas diferenças entre uns e outros? Nunca fui adepta de gíria, não me atrai. Uma professora certa vez, já bem de idade e meio por fora do “estar ligado” pediu que todos do curso fizessem uma lista das gírias que conheciam, fiz uma lista enorme. Ela se surpreendeu, “mas você não fala nenhuma dessas palavras”. Eu: “não falo, mas não significa que eu não ouça o que as pessoas falem, apenas que não gosto, embora use uma ou outra, que já não são mais gírias de modismos por terem se incorporado à linguagem sem substituição rápida”. Ela nem perguntou porque eu não gostava das gírias, adotou todas.
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Ilustração 3: como naquela frase que o mundo conhece bem: “uma andorinha só não faz verão”, de Aristóteles, está na Ética a Nicômaco. Talvez os provérbios sejam as gírias que permaneçam com algum fundo que vale a pena ser pensado e pronunciado e, por isso, se perpetuam. Não gosto de gírias porque (pode até ser pedante) é como se o giriante (aquele que faz uso de gírias, sim?) girasse o tempo todo sobre uma linguagem que corre atrás para possuir e não consegue e de gíria em gíria vai-se indo... é como não ter uma linguagem sua, é como não ter um ser próprio de linguagem. Sei que alguém poderá argumentar que a linguagem, num tour de force, pode ser pensada toda ela como uma gíria desde que não fui eu que a criei, nem eu nem você nem ninguém que a usa hoje. Sabemos, quando aqui chegamos no mundo a linguagem que iríamos aprender já estava determinada (isto é Heidegger, que usou uma única expressão-gíria em todos os seus textos, a saber: “a saber”); essa linguagem que já está dada quando aqui nascemos, não seria o catalão, nem o russo, nem nada nem não, seria o português. Contudo, é possível escolher as palavras que desejo para mim e como as ‘ligo’ ou significo ou resignifico vem a ser a minha liberdade lingüística de formar o meu mundo de palavras. Os giriantes não se preocupam com isso, desde que alguns da tribo entendam o significo o resto do mundo que se dane, mas se a tribo se dispersar eles ficam perdidos em sua linguagem descartável. E ainda podem contradizer com: somos os únicos que ainda criamos novas palavras. Pois sim...
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Ilustração 4: Há diferença entre lirismo e pieguice e são muitas. Prefiro trocar a palavra pieguice por lirismo equivocado por que dá a entender que existe um lirismo em potencial e que só momentaneamente ele está meio assim fora de época, que esse lirismo pode vir a ser algo de belo para alguém. E até mesmo o ser mais piegas pode ter algo de belo para oferecer ao mundo. Agora, as gírias, as gírias, são sempre para juntar rebanhos ao redor de um chão nada sólido, é o lugar da preguiça e do rebanho. Nietzsche por certo sabia disso do contrário em vez de filólogo teria se preocupado em doutrinar rebanhos através de gírias. Além do mais, Nietzsche também deve ter captado que numa 'tribo' haverá o que assuma o papel de 'senhor' enquanto todo o resto faz o papel de 'rebanho', pois sempre haverá aquele que reprimirá o rebanho por estar atrasado com sua linguagem-giriante.
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Ilustração 5: “tu não te moves de ti”, César citando Hilda Hilst. Não Cês, eu me movo de mim, mas antes de me mover ao exterior ‘indo como todos vão’ faço um esforço contínuo para me mover para o interior ‘indo como sempre tenho ido’ e escolhendo a linguagem que sinto poder me levar para mais além. César me ensinou muitas sutilezas sobre a linguagem, ensinou sem ensinar, entendem? Apenas sendo quem ele é com sua linguagem impecável, escolhida por ele. Acho que ele nunca escreveu uma gíria sequer ao falarmos e foi a pessoa mais impressionante que encontrei em termos de linguagem. Não exagero, Cês é espantoso com as palavras. Acho que ele também sente que giriar é preguiça de se expressar e escolher sua própria linguagem. Entre giriantes, falantes, e piegantes, fico eu, assim, numas de sentimentalismos com a linguagem porque nem todos vêm ao mundo para fazerem verão. Alguns vêm para fazerem outras estações. Que Aristóteles me perdoe, há que se ter de começar com outras estações. Voilà! Beirut, “que comecem as estações”.

* Ilustração-maior: m
elhor argumento empírico e que se perpetuou ao longo de séculos e séculos dos séculos: alguém por acaso já viu gíria em epitáfio?
* beijos beijos
sandra ádria_na