quinta-feira, abril 23, 2009

Acaso, uma crônica?


Ando lendo os autores brasileiros e latino-americanos vivos, digo, atuais, não por acaso a leitura, gostaria muito de saber escrever crônicas, então estou lendo principalmente blogs de cronistas como Marcelo Rubens Paiva, Fabrício Carpinejar, Antonio Prata e algumas autoras do Digestivo Cultural. E tenho pensado sobre: como é que se pode começar a escrever uma crônica? Sei, o cotidiano é quase tudo para tanto.

Não curto muito o cotidiano. Como é que posso transcender este olhar indireto sobre a vida para um olhar mais direto? Preciso desejar não só escrever, mas olhar, observar, pensar sobre o que é mais próximo e esquecer o que me leva para mais longe: as exageradas abstrações. Estas eu amo. E amo muito. Ando pensando, talvez seja possível um olhar indireto ao cotidiano que dê a impressão de ser um olhar direto e que isso acabe em uma crônica. Uma que fosse, depois seria fácil continuar. Não sei se já escrevi alguma, em sensações diria que nunca.

Mas, foi por acaso que cheguei ao blog do Marcelo Rubens Paiva e descobri que ali posso aprender também sobre como escrever uma crônica. Fui até a Siciliano para pegar um exemplar de Leite Derramado, bem perto dos livros de Chico Buarque havia uma série de livros do Marcelo, eu lembrei de quando li Feliz Ano Velho, lembrei que era universitária, morava tipo república, lembrei de um tipo de vida, assim, num instante e fui olhando os livros dele e fui me sentindo perdida.

Não levei nenhum livro do Paiva neste dia. Descobri seu blog e percebi que o autor de Feliz Ano Velho havia se tornado um escritor e tanto, dedicou a sua vida à escrita, contos e romances, avançou para além dos livros de ficção, roteiros de teatro e de cinema, e bloga escrevendo crônicas, escreve muito. O que mais me chamou a atenção é que ele é plugado na vida, ama a literatura, com certeza, mas ama também a vida. Senti assim, seu texto é vivo, pulsa. Deduzi: é condição de possibilidade para escrever uma crônica permitir que a vida pulse?

Pulsei. Voltei na Siciliano para buscar a segunda vez que te conheci, último livro do escritor. Li numa madrugada. Tem vida, aliás, várias formas de vida. Muitas. Livro inteligente, com humor, cult e como eu disse, contém várias formas de se viver. Talvez se o personagem tivesse se empenhando em ensinar às personagens do livro como é que se escreve uma crônica, teria cronistas en passant. Com isso tenho para mim que ou se vive para se apreender o cotidiano com intensidade ou não se vive muito, mas aí a observação terá que ser muito aguçada para compensar o não-vivido, aquele do cotidiano não-cotidiano. Posso inventar qualquer coisa numa crônica, qualquer escritor pode fazer isso, mesmo o iniciante. Posso não inventar absolutamente nada numa crônica, qualquer escritor pode fazer isso, principalmente o iniciante. Posso pulsar e posso observar. E também nada disso. (Já estou inventando uma forma de cair em abstrações). Acho que vou colocar como meu primeiro princípio: devo me concentrar no cotidiano e em suas sutilezas reais, devo me concentrar com o olhar direto, devo estar atenta em vez de estar distraída. A abstração é inimiga da crônica. (ainda que a linguagem e o pensamento sejam abstratos enquanto estão ‘vivendo’).

Agora, olhem porque escrevi este post, partiu de um texto, olhem só o que o escritor fez com uma palavra que tinha tudo para cair diretamente em abstrações, derivações, ilações, deliriações, distrações, e não foi o que aconteceu:

“Sou aterrorizado pela ideia de que muitas coisas que nos acontecem são obras do acaso. Toda a evolução da espécie pode ter sido obra do acaso. Uma bactéria que sofreu mutação. Um peixe que resolveu caçar na praia. Um asteróide que eliminou os dinossauros e abriu espaço para o domínio dos mamíferos. O macaco que fez de um osso uma arma. Hitler que não conseguiu desenvolver a Bomba Atômica antes dos americanos.
O Universo pode ter sido obra do acaso: forças gravitacionais e quânticas se romperam numa grande explosão, o Big Bang, e cá estamos nós, numa escada rolante do metrô, na fila do bilhete único, discutindo se este disco do Caetano é melhor ou pior do que o anterior.
Minha avó Cecy conheceu meu avô Paiva num trote. Ele gostou da voz da inoportuna, que ligou no meio do expediente, e cá estou, em dúvida entre o Halls azul e o preto.
Conheci minha primeira mulher numa lanchonete, Frevinho. Se ela não estivesse lá naquele dia, eu não teria convivido 9 anos com ela. (...)” (http://blog.estadao.com.br/blog/marcelorubenspaiva/)

É o início de um de seus escritos. Bárbaro, sim? Porque ele fala justamente sobre o acaso e o acaso é na filosofia algo que dá margem para muita abstração, eu jamais pensaria em cronicar sobre o acaso. O texto do Marcelo Rubens Paiva me fez entender que existe um gesto de diferença entre um excelente cronista e uma divagadora, que está antes da escrita, e que talvez seja tudo, é assim: o perpicaz cronista, saberá pensar em uma palavra de esfera divagadora e elevá-la a uma crônica porque antevê o particular em primeiríssimo lugar, seu olhar é um olhar atento para a circunstância, momento, fato, evento, vida que corre, que flui, que é; a divagadora faz o contrário, partirá sempre de um dado particular dando um salto rápido para as abstrações e enrolando-se nelas (o que lembra de perto Bergson e o novelo de lã) sentirá que fazem o maior sentido, mesmo que isso não ocorra, fará sentido, o maior deles, toda abstração é plena de sentidos para quem abstrai, mas não conseguirá trazer de volta a abstração para um acontecimento real de vida. Vai e não volta. E o que é pior, só fala da ida e da chegada, sequer menciona o ponto de partida. O cronista, ao contrário, precisa saber ir, voltar, ir, voltar, sem temor de circular. E saber o ponto de partida que viveu na realidade. Marcelo sabe.

O acaso me fez ver algumas diferenças antes titilantes. A despertez ainda é tímida.
Eis meu acaso da noite de hoje: Juan Rulfo. Será que meu caminho cairá de novo na titilação?

sandra ádria_na fasolo