terça-feira, agosto 09, 2005

"silenzio"

Chamava-se Lucas. Mas não estava só, falava em equipe com a equipe mais ausente do universo que dizia: não tenho paciência. Ele lembrava Platão, seu método, parte por parte, seu enigma, o silenzio. Sua maneira de dar boa noite era perguntando pelo silenzio: brigando com ele ainda? Não, havia substituído o silenzio por um sentimento. Não conseguia compreender o sentimento já que transcendia minha racionalidade. Então, dedicou um texto ao belo sentimento. Intensidade. Espantei-me. Respondeu, eu gosto disso, os extremos, pois o meio é morno, o meio é chato, o meio é metódico, o meio da encruzilhada é um poste de indicação e se você vai por ali, dá com a cabeça nele, cai desacordada e não segue o caminho. Era uma estranha metáfora para falar sobre caminhos não seguidos. Pensei o quanto é difícil definir se estamos no início do meio, morno, chato e metódico, contrariando os budistas que preferem o caminho do meio em suas várias possibilidades. Eu também não gostava de métodos e regras em demasia, mas curtia alguns lances budistas, que afinal também tem sua regra: a do caminho do meio. Os mantras prometem um algo mágico que sempre nos falta, os mantras são promessas para desfazer o caminho cartesiano que todos tentam seguir a qualquer preço para conservar coisas nada cartesianas, nunca seriam. Ele seguiu dizendo: sei lá, pra mim o eixo, a linha reta, é um lugar onde meu caminho se encontra num ponto. depois passam-se anos e eu me encontro em outro ponto. cruzo o eixo, mas nunca ando nele. Boa dose de surrealismo, simbolismo. Com certeza diria, não tem nada de surreal, é a realidade mesmo, mudam as palavras e a forma de dizer, mas é isso. A vida. Ele tem bom gosto. Bom gosto para viver. Sim, tudo é vida. Inclusive poetas de campos e espaços & as imagens e sensações despertadas em mim pelo sua escrita, eram lindas. Tinha a ver com vida, com percepção, com amor pelos detalhes do viver. Ele possui o impulso da transição do sentido, percebido, vivido, amado ou não, para as palavras, não há arte sem essa passagem, quase um rito para o não-dito. Eu já amara muitos textos, mas poucas vezes desejei ter escrito muito do que li, mas desejei ter escrito as frases de Lucas por um ato egoísta, desejava ter escrito pela possibilidade das sensações produzidas pela passagem de descrições à linguagem que eu sei que sentiria, não como ele, sentiria do meu modo. Não era só linguagem, alguns passos antes havia tudo, e só uma parte conseguia atravessar a transição e formar-se assim: em e por palavras. Não limitar, não cortar antecipadamente o imaginário, talvez fosse o segredo. Talvez por isso algumas pessoas não conseguiam passar pela transição, sempre tão decididas para tudo e quanto a todos, são sólidas no lugar perfeito para o etéreo; são fixas no instante do olhar perdido com toda a diferença que o faz ser perdido; são contidas quando um extravasamento poderia aproximá-las de algo semelhante à felicidade; são independentes e frias demais em momentos que assustam; são dependentes e com um calor cênico quando não há ninguém disposto a “carregar” a dor em seu lugar; são muito formais para a Vida por muito tempo e a parte-por-parte fica só nisso, fragmentos sem resignificações, a formalidade permite isso, é o desejo insensato de se viver o imutável, de ser sempre o mesmo, de nunca permitir-se nada diferente do caminho do meio, é o desprezo pela Vida e o Viver covarde, é o Amor pela vida e o viver do script roteirizado no silenzio de decisões que fariam os anjos de Rilke atirarem dama-da-noite, santo daime e lírios, para o não-extermínio da Vida, é claro. E de alguma forma respira-se tudo isso, ainda que nenhuma palavra pudesse ser dita ao outro. Respirar o caminho cartesiano, passos perdidos para se viver outras coisas.
& de algum modo, respirava tudo isso & sabia, respiraria pelo resto da vida & os instantes não-mornos, não-chatos, não-metódicos, seriam & sempre o seriam, raros. A partida, a perturbação, o complicado que seria viver com “aquilo” por um tempo não-previsto. Sim, o conforto no silenzio do caminho do meio é o extremo oposto do conforto no silenzio do caminho não-previsto. De alguma forma respiramos tudo isso.
& sequer importa viver somente no imaginário, não importa se vivera empiricamente. Vivera. & isso não é o caminho do meio. Mágico.
Por fim, disse que não se parecia em nada com o que escrevia. Perguntei: quer uma imagem sua através da imagem do seu texto? Sim, queria. Respondi a ele: Vive intensamente cada detalhe colocado pela Vida diante de...é sedento por liberdade em vários sentidos, mas por outro lado é um romântico na linha dos idealistas românticos. Não gosta de regras e convenções sociais porque matam a vida completamente, tiram sua beleza própria e você busca o tempo todo a beleza existente no viver. Adora sensações surreais porque são sempre inexplicáveis, adora enigmas e não-ditos com suavidade e silêncio, como na música... ao que Lucas completou: e palavras que morrem nos olhos antes de cair na lingua. & continuei: & sensações que não deveriam morrer na finitude do tempo exatamente por terem sido impossíveis de definição. & Lucas foi chamado de intenso e a mulher que disse isso ao dizê-lo
virou as costas e fechou a porta. Nunca mais voltou. Uma única palavra não esperada e o silenzio para sempre na ausência de quem não retornará_ uma única palavra. Ficamos sempre pelas palavras. Partimos pelas palavras. Retornamos pelas palavras. Amamos pelas palavras. Às vezes morremos um pouco pelas palavras, ainda que não-ditas. Deu-me um conselho: aceite e mostre o melhor e o pior de si. Lembre-se de se permitir os dois, sempre
. De que precisava para permitir-se os dois? Ser livre comigo mesma, ser intensa & o que mais? Parecia um exercício existencial a dois retirado da obra de Cioran, em vez de Exercícios de Admiração, em contraponto, leríamos Exercícios do Absurdo ou Exercícios do Pior que Há em Mim Com Todo Meu Amor Para Você. Era perigoso mais que absurdo.
Anna Karenina: Ora, o que há de escatológico em ouvir a respiração do outro?
Lucas: Extremos estão mais próximos de si do que qualquer um deles do meio.

sandra ádria_na