sexta-feira, maio 04, 2007

Estorvo_"Pode ser que então não chovesse"

À Flor da Pele 5.

O lirismo-buarqueano


Não é razoável que tenha chovido tanto em minha infância. Mas me vejo menino, e chove. Minha irmã já adolescente, e chove. Os dois no riacho, em roupa de banho, queimados de sol, e chove. O sol, vejo o sol no cimento, vejo o gato deitado no sol do cimento, e chove. Pode ser que então não chovesse; a chuva imprimiu-se mais tarde na minha memória.

O silêncio-buarqueano
Seria um absurdo afirmar que o personagem de Estorvo é facilmente influenciado pelos seus próprios pensamentos, se não afirmássemos em contraponto que ele é pouco ou quase nada influenciável pela realidade, que parece estar ali como uma espécie de elo entre a sua vida e o seu abstrair. Cheguei a pensar que abstrair pudesse ser sinônimo do título da obra, abstrair é exatamente a mesma coisa que "Estorvo", em termos de um modo-de-ser filosófico quase me convenço de que sim, é isso mesmo. Como a narrativa é intensa demais pode dar margens a interpretações diversas, mas me sinto à vontade com isso como imagino que uma leitora possa se sentir ao ler uma obra e cair em equívocos, nunca será equívoco para mim que "assim" senti a narrativa. Com estes pensamentos voltei a pensar no silêncio do personagem, no silêncio que ele faz-desfazendo o Mundo, ele não é então silencioso para-si. Então pensei: o silêncio do personagem-buarqueano pode levar à inversão e a percepção tornar-se exatamente oposta. Talvez todo personagem construído com um modo-de-ser & pensar mergulhado em possibilidades, em “se” isso, “se” aquilo, seja sempre muito mais influenciável pelo que vai em seus pensamentos, percepções, sensações do que pelo caminho da realidade dado pelo exterior que o leva a abstrair. Embora seu silêncio possa ser confundido, embora ele possa, nestes instantes, "rir da seta no ar", sorrir para si mesmo do equívoco que vê na fisionomia à sua frente, plena de certezas equivocadas, ao silenciar ao invés de dizer “sim”, “não”, o seu “pode ser”, se pronunciado em voz alta, seria, quem sabe, entendido como mais uma plena certeza em equívoco. Quem em-si possuir a espontaneidade de não emitir juízos de valores ou de percepção, a partir de um silêncio que vem de fora, do outro, sentirá o lirismo a imprimir algo em suas lembranças e será possível ouvir então dos lábios do Poeta: “Pode ser que então não chovesse".
"Dentro d'água turva, impossível julgar"
“No dia em que ele fez esse gesto eu não achei nada, e na certa não tinha nada que achar. Mas hoje, além do gesto, descubro um brilho em seus olhos que me incomoda. O brilho deve ser reflexo do horizonte que ele olhava, mas na minha lembrança não entra o horizonte, e os olhos brilham por brilhar. [...] acho que ele falava de literatura russa. [...] Torno a me lembrar do meu amigo olhando o horizonte, seus cabelos molhados negros como nunca, e ele agora se penteia com mais vagar que antes. Provavelmente se sentindo lembrado, tira longo proveito da situação. Traga um cigarro, que na lembrança anterior nem existia, e fica se deixando olhar, como um ator de perfil. Que se vira para mim de repente, querendo me surpreender, com um brilho nos olhos que me incomoda de novo. E já vai anoitecer sem que eu tenha conseguido olhar seus pés. Mas mesmo aquilo que a gente não se lembra de ter visto um dia, talvez se possa ver depois por algum viés da lembrança. [...] E é assim que vejo finalmente os pés do meu amigo, pelo rabo do olho da lembrança. Vejo mas não sei como são; são pés refratados dentro d’água turva, impossíveis de julgar.” (estorvo 80) E turvo (a) é sinônimo de Estorvo.
O tempo da lembrança
“Impossíveis de julgar”, talvez a lembrança graciosa que vem por um viés do tipo “não estava lá” no instante original do vivido seja impossível de julgamento, “do que não tem juízo” pela linguagem formal, pode ser que então haja um outro tipo de "julgar". Se nos fosse dado conhecê-lo haveria, por certo, uma discussão pela palavra mais apropriada: os não-poetas brigariam pelo termo “juízo”, pois lhes agrada a ilusão de tal conceito implícito, mas os Poetas, e talvez somente os Poetas, e nunca saberemos porque é dado só a eles, pensarão durante muito tempo pelo viés da lembrança, pelo viés da lembrança-buarqueana, e ficarão indecisos, e ficarão extasiados ao pensar que “pode ser que seja esse o termo... pode ser que seja aquele...” e, ao infinito, chegarão a pensar na palavra ideal, plena de signos a formar o querer-dizer que lhe seja próprio. Essa palavra poderá ser aquela que “eu olharia tranqüilamente no tempo da lembrança", diz Chico Buarque em dada passagem. "Mas o gesto instintivo [de nomear algo que se desconhece] deve ser reflexo de uma intenção que está noutro tempo", (estorvo 83) e este reflexo com uma intencionalidade que está noutro tempo devolve o Poeta à esfera do cotidiano, do tempo da não-lembrança, aqui, olhará tranquilamente dizendo a todos: “Depois de certa idade, acho que o acervo de sonhos se esgota, e eles começam a reprisar. Mas como nada é totalmente péssimo, a memória de um velho também enfraquece, e ele já não tem certeza se sonhou aquele sonho ou não” (estorvo 100). Sentirá que vive ainda pelo viés do tempo da lembrança, embora de forma equivocada, como “alguém que as pessoas encontram e olham em dois tempos, porque no primeiro a pele parece falsa, e é a fama” (estorvo 135). E é preciso saber buscar a pele não-falsa do tempo das lembranças, por isso em tempo 2 ele dirá: "Pode ser que então não chovesse."
O espaço-buarqueano
Aos Poetas deveria ser dado o anonimato para que pudessem proteger todo o tempo das lembranças & assim proteger o que lhes é mais sagrado que tudo, a Poesia como lembrança representada pelas Imagens de todo o tempo no-dentro-de-um-Único-Outro-Tempo &m Imagem. Bergson diz que existem todas as intensidades possíveis de reflexão na memória, todos os graus de liberdade, mas que o corpo e o espírito, em termos de espaço, possuem uma bifurcação em possibilidades: a primeira, como duas vias férreas que se cortariam em ângulo reto, a segunda, o espaço seria como os trilhos que se ligam por uma curva, de modo que se passariam insensivelmente de uma via à outra. Penso no espaço do Poeta, pertenceria ao espaço entre o estar-aí e o flanar em tempos da lembrança? "Seu passado não é verdadeiramente dado em seu presente, mas um ser que evolui mais ou menos livremente cria a todo instante algo de novo: é portanto em vão que se buscaria ler seu passado em seu presente se o passado não se depositasse nele na condição de lembrança, é preciso que o passado seja imaginado pelo espírito" (Bergson). O personagem-buarqueano talvez soubesse sobre Bergson, talvez intuísse, talvez o horizonte fosse para ele metáfora para o tempo das lembranças, pois como se fosse presente e como se fosse passado o espaço não seria dado nem em ângulo reto nem em curva, ele se daria no “Pode ser então que não chovesse."
O prolongar do tempo das sensações_ como se chovesse
O prolongamento de antigas percepções, ao se penetrar nelas pelo viés de um horizonte só seu, encontrará o lirismo, estará todo ali, talvez lhe sorrindo dirá: bem sabes onde encontrarás a Poesia, bem sabes... deixe que chova por mais tempo e deixe que a chuva caia com todos os graus de intensidade que tiveres coragem de sentir, deixe a chuva continuar caindo, deixe que a água caia até vê-la "turva" e então sendo impossível de julgá-la, encontrarás uma vez mais a esfera poética e é, por isso, que podes escrever: “Pode ser então que não chovesse."
Ainda o espaço-buarqueano_ faz-desfazendo o agora do Poeta
“ ... com vozes tão idênticas que parecem vozes de um só homem em contradição” (estorvo) o personagem-buarqueano sentirá vozes a soarem no presente, vozes a soarem no tempo das lembranças, seu modo-de-ser-asbtrativo o conduzirá ao espaço lírico a imprimir-lhe na memória tudo aquilo que existe pela ausência de Poesia no cotidiano_ vida real versus o tempo das lembranças, no espaço do lírico, faz-desfazendo o agora do Poeta. E, ainda que o abstraia, não é para "este" agora que estará a olhar, ele saberá quando soarem as duas vozes idênticas onde é o lugar da percepção, saberá que no espaço do lirismo não importam as contradições, "quando já não se tem certeza se sonhou aquele sonho ou não” e é por isso que ele poderá sempre sonhar ou não-sonhar, ter certezas ou não tê-las & escrever: “Pode ser então que não chovesse."
Pois,
"A chuva imprimiu-se mais tarde na minha memória."
"Não é razoável que tenha chovido tanto em minha infância. Mas me vejo menino, e chove. Minha irmã já adolescente, e chove. Os dois no riacho, em roupa de banho, queimados de sol, e chove. O sol, vejo o sol no cimento, vejo o gato deitado no sol do cimento, e chove. Pode ser que então não chovesse" (estorvo)
sANdrA & suas últimas sensações sobre Estorvo_ como o personagem é verdadeiro demais começo a me repetir no que escrevo. Aqui terminam os Posts dedicados a Estorvo com À Flor da Pele 5 dividida em Mal-Me-Quer/Bem-Me-Quer/Mal-Me-Quer/Bem-Me-Quer...