quarta-feira, abril 25, 2007

Estorvo_"Com a substância que a música no escuro tem"

"À Flor da Pele" 3
Capítulo 2_ "Ando no meio do povo em linha reta, mas parece que cruzo sempre com as mesmas pessoas. E essas pessoas também parecem se admirar, me vendo passar tão repetido. [...]" À descrição feita pelo personagem de um "ato contínuo" de abrir e fechar de dedos, um a um, segue-se a chegada no sítio da infância: "Sinto que, ao cruzar a cancela, não estarei entrando em algum lugar, mas saindo de todos os outros. Dali avisto todo o vale e seus limites, mas ainda assim é como se o vale cercasse o mundo e eu agora entrasse num lado de fora. Após a besta hesitação, percebo que é esse mesmo o meu desejo. ... mas não sei por onde passar. Minha brecha pode ser a noite, que começa a nascer lá embaixo, no fundo do vale. Ainda há sol no alto das montanhas, e a noite vem subindo pelas vertentes como um óleo. Sento-me na pedra redonda onde eu me sentava quando era pequeno, quando pensava que a noite primeiro enchia o vale, depois é que transbordava para a terra e o céu. Quando a noite se consuma, perfeita, sem lua nem estrelas, sem encantos, sem nada, salto da pedra e vou descendo a estradinha de terra batida sítio adentro. [...] Mas ali há uma música que me desnorteia o tempo inteiro. Demoro a admitir, pois nunca houve música no sítio; mas há músicas, muitas músicas ocupando todos os espaços, com a substância que a música no escuro tem. [...] Atravesso a ponte, e da outra margem ouve-se apenas o riacho, a água absorvendo as músicas... mas não preciso dela para chegar ao olho do vale, onde eu pensava que nascia a noite." (estorvo 23-24) É uma linda passagem, lírica, como lembranças de um tempo passado em um ato contínuo e repetido de tudo aquilo que é noturno e lírico, sim, um ato contínuo de recordações em que se sente estar saindo de todos os outros lugares sem que para isso se necessite estar entrando em um único lugar, o das recordações da voz do pensamento que deseja estar no lado de fora do mundo, passez-à-côte. Mas o personagem sabe de seu desejo, o passar ao lado do mundo que vive fora de um tempo passado, o passar ao lado de si no agora pelo desejo de que determinados momentos vividos pudessem ser repetidos além das lembranças: "muitas músicas ocupando todos os espaços", e, no entanto, a soar "com a substância que a música no escuro tem". E era no olho do vale que ele pensava nascer a noite, e era na noite que ele sentia a substância da música num lugar onde nunca houve música? "A insônia verdadeira principia quando o corpo está dormente [...] O sono chega como um barco pelas costas, e para partir é necessário estar desatento, pois se você olhar o barco, perde a viagem, cai em seco, tomba onde você já está. [...] E ainda não amanheceu." A insônia verdadeira vinda das sensações? Pensamentos no lugar da falsa insônia? Um possível "ato contínuo" de recordações_ como os dedos que se fecham um a um e depois totalmente e então voltam a se abrir e repetir o mesmo gesto (descrição na página 22), a despertar o desejo de repetição daqueles instantes jamais a se repetir além da memória. Talvez "a substância" da música seja o instante acrescentado a uma lembrança, e de momento em momento, construído sem que tivesse sido vivido, a lembrança, já não mais a original, acaba sendo ouvida como o som que "a música no escuro tem". E quando ele acreditava que a noite nascia exatamente ali e dali, no vale, onde se contempla o "horizonte" e seus "limites", paradoxalmente, o devir no horizonte, horizonte como imagem de futuro, de "passos" a serem dados no fluir da vida, crê, talvez sem desejo para tanto, no seu contraponto do limiar de lembranças ou daquela música que nunca existiu mas sempre soará, da partida para a qual não se pode olhar, do contrário é ali que se fica. Nem "a brecha poderá ser a noite, que começa a nascer lá embaixo, no fundo do vale", quase como se dissesse sem palavras, através das descrições que realiza no pensar: sei do horizonte e sei de seus limites, sei da música que soa, sei de sua repetição e de meus desejos de repetição, mas "não sei por onde passar", e sem passar pelo fluir mesmo da vida e sem passar pela repetição original do vivido, condição de possibilidade das lembranças em si, o personagem continuará a ouvir músicas sem existências reais. Seu modo-de-ser: passa ao lado da vida o tempo todo, sua grandeza é passar ao lado com a lucidez dos grandes filósofos que percebem suas sensações, dos poetas que não se rendem jamais à insônia não-verdadeira, porque sabem que passar ao lado é o limite exato do não ofender, "pode ser que ofenda, porque é outro idioma", escreve Chico Buarque numa passagem em que o personagem continua pensando e no lugar do "dizer", prefere calar. Aqui, neste "outro idioma", em metáfora, cabe o tempo, o espaço, a diferença do vivido, a implicação em não-dizer, cabe uma vida inteira e "pode ser que ofenda", afinal, sempre ofende quando o "dizer" de um lado pensa que a noite nasce da contemplação de seu "vale" e o outro não contempla nada, quase nada, passa ao lado da vida de outra forma, vivendo cada instante nunca olhará para o barco que chega pelas costas, não desejará nem o horizonte nem o seu limite e olhará para rostos conhecidos "como um cego olha, não nos olhos, mas em torno do rosto", como quem procura aquilo que não pode ser visto mas sem perceber o que procura. Esta é a imagem do caseiro do sítio, o próprio abandono existencial e embora este capítulo de Estorvo seja todo ele permeado pelo "abandono", as lembranças da infância do personagem principal e o abandono existencial da vida do caseiro do sítio, mais que real, ainda assim a imagem mais forte que permanece em nossos pensamentos, após a leitura, é a descrição inicial do vale, do horizonte, da música, da noite, da substância mesma da Vida & de seus limites. Para alguns será sempre o horizonte, para outros será sempre a linha que o delineia dando forma ao seus limites, mas para alguns poucos, talvez os poetas, a imagem mais forte da substância do Viver será como o balançar das ondas, ora no fluir da vida, ora no fluir do recordar, e para estes o barco que chega pelas costas e que não pode ser visto, chegará sempre como um convite para o balançar, embalar, musicar, repetir, a Roda Viva do Desejo de Um Ontem Que Nunca Mais Viverá, mas ontem já foi um hoje. Aqui, não será necessário dizer para si: "não sei por onde passar", não há escolhas, só memórias.

sANdrA & as sensações do 2 Capítulo de Estorvo de Chico Buarque