terça-feira, abril 28, 2009

Você Já Olhou Hoje Para Os Pés De Quem Ama?


“Sempre tive vontade de escrever um filme que começa com passos de uma mulher na rua, decididos e apressados, que fundem para outros passos, da mesma mulher na mesma rua, 10 anos depois. O ruído dos saltos... daí em diante, se desenvolvem duas estórias paralelas. Do dia em que ela, personagem, deixou a casa dos pais pela primeira vez para ir morar sozinha e do dia em que ela abandonou o primeiro marido e grande amor. É só isso.”
Domingos Oliveira http://domingosinprocess.blogspot.com/
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(pensamento solto: sobre os passos de uma mulher na rua, indo embora e indo embora de novo. Eu a imaginei passando com o rosto de lado e caminhando de costas para muito longe, até sumir na chuva calma, tem que ser à noite, partir à noite é sempre mais tocante pois mais solitário, uma música de Beirut soando, talvez sunday smile, porque partidas tem sua dose lírica e sua dose de exoticismo. Então a personagem parte uma primeira vez, sorrindo?, parte uma segunda vez, sorrindo de novo? Ou não? Das diferentes 'partidas'.
Por que as pessoas raramente partem sorrindo? Será que a partida tem sempre uma dose de: e se eu me arrepender, e se eu sentir falta do que estou a abandonar, e se estou equivocada e não é esse o caminho, e se eu não partisse?)
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Sempre tive vontade de fundir meus passos na rua, fundir no mundo meus passos de mulher. Decididos e apressados, mas aqui não é possível. Aqui é cidade provinciana, aqui os passos são contidos e de contidos sempre os mesmos. Chegará o dia em que meus passos apressados irão se fundir com outros passos que serão também os meus. Passos não podem ser iguais, apenas semelhantes e há tanta coisa que se assemelha nos seres humanos que sobre passos ninguém repara. Já reparou?, ninguém repara em ruídos de passos. Deve ser porque eles apenas anunciam que se está indo para algum lugar, indo pode significar estar vindo, estar dando voltas, estar em espiral incerto. As pessoas não andam para trás, a não ser para brincar em travessuras infantis, então, mesmo que se esteja retornando, os passos existem-sendo para adiante, para o movimento do existir. Caminhar como ilusão de se estar indo, futuro, devir, enquanto os pés se movimentam para frente os pensamentos se movimentam para trás, o passado correndo atrás das passadas apressadas, decididas. Baudelaire andava, muito, depois escrevia. Chico Buarque tem uma passagem sobre "os pés do meu amigo", chorei quando li, chorei muito, pés são muito próximos da escatologia, porque a não ser que se veja neles fetiche, somente são olhados atentamente quando se está mais próximo de algum fim, a morte, talvez, o hospital, quem sabe, as despedidas em aeroportos, porque estas parecem mais importantes do que às vezes realmente são. O vermelho é cor sagrada demais para ir junto com a escatologia. O ir apressado sendo que se está voltando ou o ir apressado sempre em frente, com lembranças atravessadas para trás. Temo que caminhar seja uma ilusão contra a finitude, todos levam a sério demais seus pés e não lhes dão muita atenção. Os pés são sempre meio blasés. Pés são escatológicos, dá para perceber os pensamentos de alguém pelo balanço dos passos. Beirut, sunday smile me faz ir mais leve. Quero cosmopolitar andando com um sorriso de domingo. Desconfio de passos que poderiam estar indo mas preferem ficar, têm medo de acelerar os pensamentos em ‘ré’, eles têm medo, muito medo. Que quem sapateia tripudia dos seus pensamentos rindo à toa da vida. Deve ser ironia manifesta pelos pés. E aposto que quem sapateia ri um bocado da vida, da sua e da vida dos outros. Pressinto que Nietzsche sapateava no silêncio do seu quarto enquanto filosofava. Como se esmigalhasse lembranças. Como se lembrasse sempre a mesma coisa. Como se esmigalhasse ideias. Um dia eu vou sapatear, vou sim. Mas não agora. Ainda não. Por enquanto só desejo sorrir. Um sorriso de domingo para começar. E algumas passadas apressadas para suavizar.
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Correndo para pegar o metrô. Desconfio de quem corre assim de repente, e sou eu a correr. Ainda não sei. Gosto de observar os pés dos outros, desde que li Chico Buarque que fiquei com essa neura literária associativa sobre pés, "Só não consigo me lembrar dos pés do meu amigo. Vivíamos descalços, e não me ocorre ter olhado alguma vez aqueles pés. Nunca reparei se eram grandes ou bonitos. Não sei dizer ... E já vai anoitecer sem que eu tenha conseguido olhar seus pés." Tudo o que o Chico escreve tem poder imenso sobre minhas sensações, se ele escrevesse um livro por dia eu leria um livro por madrugada. Tenho uma imagem do Chico andando com chinelos simples, pés a mostra, que é para eu me lembrar que ele é real, é humano e aposto que tem seus momentos de sapateado. Todos temos. Os meus pés são pequenos, muito pequenos, pés de criança ainda. Eu caminho rápido que é para pensar que tenho pés adultos, eu caminho com passos pequenos, que é para não ser tão adulta ainda. Mentira, meus pés são pequenos e não tenho como dar passadas largas. Quem dá passadas largas vai longe rápido, mas quando precisa retornar não o sabe fazer lentamente e arrisca a estraçalhar-se em seu retorno existencial. Vejo agora um menino todo de preto com um sapato esquisito, o sapato também é preto e tem tiras vermelhas. Seria sapateador não fosse o estilo do sapato, já que o vermelho tripudia bastante da vida. Mas são só as tiras, como que costurando as ironias. O menino sorri de vez em quando, sozinho, sorri para suas lembranças onde deve estar ainda com o sapato de tiras vermelhas. Isso me faz lembrar do conto da Clarice Lispector, Amor, e do cego que masca chicles, e não consigo lembrar como um cego dá suas passadas. E não tenho coragem de classificá-las, não é certo, não é justo julgar quem nada vê, nem passadas nem coisa alguma. Não olharei para as passadas dos cegos, não. Porque se eu olhar sei que vou julgar e é o hábito de julgar que nos faz piores, muito piores.
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Eu vou com passadas de domingos que sorriem. E quando precisar retornar meus pensamentos, irei com passadas de Stalker porque lembram um círculo a se fechar sobre si mesmo fazendo da vida passos apressados para algum tipo de eterno retorno que nunca sabemos qual é. Quem sabe?, talvez o menino de sapatos com tiras vermelhas, talvez o cego de Clarice Lispector, talvez os domingos que sorriem. Talvez o choro de Nietzsche vendo um cavalo ser espancado até a morte.

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É aqui que desço, e não vou descrever minhas sapatilhas, porque não quero que vocês me julguem através de duas tiras atravessadas como se fosse um X, um x daqueles em que todos julgam: “é aqui”. E isso só por ter confessado que ainda não estou pronta para sapatear. Acho que não tenho talento para tanto.
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"[...] não posso não pensar no meu amigo. [...] Lembro-me bem do nosso último fim de tarde no sítio [...] Ele olhando o horizonte e passando os dedos nos cabelos [...] No dia em que ele fez esse gesto eu não achei nada, e na certa não tinha nada que achar. Mas hoje, além do gesto, descubro um brilho em seus olhos que me incomoda. O brilho deve ser reflexo do horizonte que ele olhava, mas na minha lembrança não entra o horizonte, e os olhos brilham por brilhar. [...] Acho que ele falava de literatura russa, mas não tenho certeza, [...] Mas sua imagem me volta cada vez mais nítida; [...] Só não consigo me lembrar dos pés do meu amigo. Vivíamos descalços, e não me ocorre ter olhado alguma vez aqueles pés. Nunca reparei se eram grandes ou bonitos. Não sei dizer [...] E já vai anoitecer sem que eu tenha conseguido olhar seus pés. Mas mesmo aquilo que a gente não se lembra de ter visto um dia, talvez se possa ver depois por algum viés da lembrança [...] E é assim que vejo finalmente os pés do meu amigo, pelo rabo do olho da lembrança. Vejo mas não sei como são; são pés refratados dentro da água turva, impossíveis de julgar. [...] ameaçou trazer os pés à tona, e eu os veria de muito perto, como vi anos depois os pés do morto..." Passagem de Estorvo de Chico Buarque.
"...um sorriso de domingo, você usou por um momento Um sorriso de domingo, nós paramos e cantamos Um sorriso de domingo, você usou por um tempo Um sorriso de domingo" Sunday smile", Beirut. *
by sandra ádria_na