quarta-feira, março 10, 2004

Filosofia para cegos

"Queres que te diga o que penso, penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que vêem, cegos que, vendo, não vêem." Saramago
Sobre a experiência de ler filosofia para pessoas cegas: um tempo atrás inventei de ler filosofia para pessoas cegas congênitas, a primeira sensação que tive foi da consciência do quanto somos egocêntricos com nossas ambições existenciais. A diferença entre aqueles que vêem e aqueles que nunca viram absolutamente nada, é que os primeiros desejam a verdade que não se mostra, não aparece empiricamente, que julgam estar sempre nas entrelinhas de alguma coisa definida como destino ou como não-destino. Os primeiros querem tudo aquilo que não vêem e o que é visto acaba por se tornar banalizado e até mesmo desprezado ao longo da vida. Os segundos, os cegos, não possuem, em geral, uma ambição existencial abstrata, a verdade essencial para eles é a própria vida em seu fluir empírico, a verdade maior desejada é exatamente a realidade que nós, da filosofia, acabamos sendo indiferentes.
E tudo porque possuímos um sentido a mais: o da visão.
Um sentido que fornece toda a diferença na busca da verdade: uns querem o que não é visível e palpável, outros, o que é visível e passível de ser tocado pelos dedos_ ou tocado, simplesmente, pelo olhar. Eu diria que os cegos são como Bachelard definiu as crianças: empiristas por natureza em seus desejos de viver.
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Quando uma pessoa fica cega ela vai perdendo a expressão facial. O rosto vai congelando. Será que a ausência do olhar do outro sobre nós e do nosso olhar sobre o outro leva à falta de expressão da face? O velho espelho de narciso negado aos que não vêem? Sem espelho, sem expressão? Em todos os casos, conheci muitas pessoas que mesmo tendo o sentido da visão em perfeito estado possuem o rosto_ e o próprio olhar_ não menos petrificado e imóvel. Talvez, a diferença aqui seja a de que os cegos não têm a expressão facial com vida pelo fato de não possuírem o contato com o outro, enfim, com o mundo; enquanto, em relação aos que enxergam, estes vão perdendo a vida porque se empenham em extirpar dos traços do seu rosto qualquer expressão que possa vir a rotulá-los de frágeis e sentimentais. Desejam o rótulo da "força" e não percebem, há muita força na fragilidade. Como um autor já chegou a definir Kafka: sua força é a sua fragilidade.
sANdrA & as ilações sobre Cegos-Congênitos e Cegos-que-se-constróem-ao-longo-de-sua-existência.