domingo, julho 06, 2008

Roda Viva. Roda da Fortuna. Roda da Vida

Fotografia de Jaime Duarte em http://olhares.aeiou.pt/a_roda_da_fortuna/foto18873.html
(roda viva, roda da vida, roda da fortuna)
“Sobe se tiveres vontade, mas com uma condição:
que não consideres injusto descer”.
Argyreia: Você já viveu alguma época da vida em que tudo-tudo estivesse bem bacana?, quero dizer, quando algo está bem de um lado o outro se esvai como se existisse uma roda-viva dentro de outras rodas-vivas. Será que alguém já escapou dessa regressão ao infinito de rodas-vivas?, como se fosse um mecanismo dentro do próprio corpo rodando, rodando, rodando e fazendo girar nosso interior de sensações e pensamentos e outro fora, rodando rodando, fazendo girar os destinos. Então isso me fez pensar que a gente tem que escolher algo, um só algo nesta vida, para proteger de tudo, inclusive da multiplicação de rodas-vivas que vão nos transformando.
Arlindo: O que você escolheu proteger?
Argyreia: Ainda não decidi se é uma boa escolha escolher. Talvez não seja possível. Pergunto pela roda da vida, lembra?
Arlindo: No tarô, a roda viva é a roda da fortuna: “é o décimo
Arcano Maior do Tarot, uma volta alusiva ao destino do homem, é uma das poucas cartas dos Arcanos Maiores que não têm uma figura humana como ponto principal. Isto porque seu tema central é sobre o reino humano – no nível mais alto (nuvens) onde os destinos de todos são tecidos em conjunto, na tapeçaria da vida. O tarot reconhece que cada pessoa faz seu próprio caminho na vida, mas também é submetido a grandes ciclos que o incluem. Nós experimentamos eventos inesperados que parecem ser acidentes, embora sejam parte do grande plano. A Roda da Fortuna também representa encontros inesperados e viradas do destino. Você não pode predizer as surpresas; consegue apenas sentir quando uma “circula” ao seu redor. Quando a energia da Roda chega, você sentirá a velocidade da vida aumentar. Você será capturado por um ciclone que te depositará em qualquer lugar. "Dando voltas e voltas ela vai, e onde ela pára, ninguém sabe". ( http://tarotestudos.blogspot.com/2008/04/roda-da-fortuna.html)
Argyreia: Nos versos de Chico Buarque, a roda viva é desejar “ter voz ativa/no nosso destino mandar/mas eis que chega a roda viva/e carrega o destino prá lá/roda mundo, roda gigante/roda moinho, roda pião/o tempo rodou num instante/nas voltas do meu coração/a gente vai contra a corrente/até não poder resistir/na volta do barco é que sente/o quanto deixou de cumprir.” Mas daí já é tarde, não?, como se o ser humano estivesse condenado à liberdade da corrente e à prisão de não ver. Os poetas talvez sejam os únicos que antevêem para onde irá o movimento da roda da vida, e na poesia descrevem o que viram, e esse ver é compreendido por poucos, talvez só os poetas é que consigam realmente compreender aos poetas.
Arlindo: Na roda viva de Breton: “Um beijo se esquece tão depressa.” Em compensação, a roda viva de Nietzsche é um eterno retorno, o que soa quase tautológico em se tratando de Nietzsche.
Argyreia: Quem sabe haja no mínimo duas espécies: um eterno retorno que escolhemos e um eterno retorno não escolhido, a roda da fortuna habita com mais força neste último, pois é de nosso destino que a roda da fortuna tira sua força para o seu movimento, pensamos que seja de nossas escolhas objetivas, certeiras, lúcidas, claras e límpidas, não, a roda viva tem seu maior impulso em nossos próprios impulsos; impulsionar: jogar para frente, movimentar, enfim, a continuidade, os poetas talvez percebam todos os seus impulsos ou o melhor que há neles, o balanço dos versos familiariza, o ritmo dos versos semelhantes ao ritmo da roda da fortuna, as rimas como tudo o que é dado à percepção, vivem numa esfera que treina o olhar para ver sempre aquilo que não é para ser visto. Nietzsche, poeta, vislumbrou tanto da natureza humana.
Arlindo: Já a roda viva de Clarice Lispector, pergunta: “Eu, reduzida a uma palavra? Mas que palavra me representa? De uma coisa sei: eu não sou o meu nome. O meu nome pertence aos que chamam. Mas, meu nome íntimo é: zero. É um eterno começo permanentemente interrompido pela minha consciência de começo.”
Argyreia: — A roda viva de Fernando Pessoa: “um barco parece ser um objeto cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um porto. Nós encontramo-nos navegando, sem a idéia do porto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é preciso.”
Arlindo: Cada filósofo, músico, literato, artista, poeta, vidente, profeta, tem sua roda viva escolhida, com facilidade encontramos pelo menos uma em cada um deles; mas a roda viva não-escolhida, aquela que permeia a Vida, essa ninguém sabe, nem a sua, nem de qualquer pessoa, é como uma virada de cartas do tarô para quem desconhece o significado do baralho, não sabe se é um arcano maior ou menor, que número contém a figura, qual sua simbologia e a relação que se forma entre as simbologias.
Argyreia: Como nomear aquilo que muda constantemente?, como atribuir-lhe uma exatidão se a transmutação é o que faz com que ela seja o que é?, o movimento, o fluir, a mudança. Para Heráclito a roda da fortuna seria o rio que flui, para Riobaldo, o rio sem margens, para um pescador, as ondas do mar, impossíveis de serem nomeadas. Em Carmina Burana, a fatalidade cantou a roda da fortuna e Boécio, dialogando com a Filosofia, descobre que é a própria filosofia a roda da fortuna, ela tem “prazer em fazer descer o que está no alto e erguer o que está embaixo". Ela, a filosofia, ora sussurra, ora grita: “sobe se tiveres vontade, mas com uma condição: que não consideres injusto descer”.
Arlindo: Mas, ainda que não tenha vontade ou não aceite a condição, não tem como escapar. Melhor aceitar o convite, há possibilidade de predizer. O infortúnio está na recusa na hora errada, na aceitação na hora igualmente equivocada. O segredo da felicidade é a sincronia do movimento da vida com os nossos desejos e nossas recusas com uma pincelada de resignação. Quantos são capazes de vivê-lo?
Argyreia: Um sim, um não, um meio-sim, um meio-não, a pirraça pode virar mesmo uma roda viva dentro de outra e mais outra e mais outra, a sincronia se perderá e a condição sequer fará alguma diferença. Mas,
ainda não esqueci o beijo.
Arlindo: “... se tiveres vontade, mas com uma condição...”
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Injusto dizer não lá em cima, injusto dizer sim lá embaixo, injusto dizer não lá embaixo, injusto dizer sim lá em cima. Sem jogo de cintura, é lá embaixo que a maior parte permanece. Terra firme. Aos náufragos, nossa homenagem. (sobre Boécio e a análise da roda da fortuna como sendo a própria filosofia ver o ensaio em http://www.hottopos.com/convenit5/08.htm)
sANdrA adriANA