domingo, fevereiro 26, 2006

Do Retorno Da Partida

Aconteça o que acontecer
o Mar continua seu
movimento impassível.
Nosso olhar nada interfere
no seu movimento natural.
Algumas pessoas lembram o Mar. Elas devem ser olhadas à distância. Algumas pessoas lembram “o longe”. Elas devem ser olhadas de muito perto. Algumas pessoas lembram proximidade. Elas devem ser olhadas somente quando estão partindo. Algumas pessoas lembram partida onde quer que estejam. Elas devem ser olhadas com um adeus no sorriso entre os lábios que pareça com ‘não há partida sem retorno’. Algumas poucas pessoas sentem esse parecer. Algumas poucas pessoas levam em seus sonhos uma partida e um retorno. Sou sempre partida.
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sandra & As Flutuações Involuntárias do Movimento Impassível da Vida
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Trakl certa vez disse, "ficamos sempre pelas palavras." Sim, ficamos sempre pelas palavras, ainda que escritas & Este é o Movimento Mais Impassível da Vida Que Dissimula Vida Quando Na Verdade Está Apenas em Flutuações de Um Ficar De Um Outro Sempre Movimento Do Dizer_ outro nome para Retorno.

Antes Que Eu Abstraia A Realidade

O Estrangeiro_ Não tenho expectativas porque elas me formalizam antecipadamente, então não vivo intensamente o que está por vir.
Anna Karenina — Mas elas fazem parte do imaginário e alguma coisa do imaginário sempre é passível de ser viver na realidade.
Havia uma diferença entre eles, O Estrangeiro via boa parte da existência pela realidade mesma, Karenina via boa parte da existência pelo seu próprio imaginário. O Estrangeiro parecia flutuar nele muito naturalmente. Isso fez com que ela o permitisse avançar mais do que qualquer outra pessoa. Ela o deixara “vir” porque ele parecia ter o olhar do imaginário. Mas não fora exatamente isso. Ele possuía o olhar do instante. Ela do olhar vivido ou daquele ainda por vir. Alguém poderia dizer que eles se completavam desse modo. Se compartilhassem o que “viam” poderiam ver além. Mas ele não se importava e não desejava olhar o passado. O futuro não era diferente, pois se não criava expectativas, por que razão amaria outro tempo que não aquele do instante vivido? E Karenina? Custava tanto esforço, tanta energia existencial o olhar do instante, ficava impaciente e ansiosa para que o instante passasse logo e ela pudesse perder-se em divagações passadas e ilações futuras, esta era sua impaciência maior. Era o próprio viver sua intolerância com o viver do instante. Talvez O Estrangeiro se sentisse assim: o passado e o futuro lhe causavam impaciência e intolerância para com a vida. Não pensava que as expectativas formalizavam a vida. Como continuar dando vida ao imaginário sem expectativas com a realidade? Era dialético, um alimentava o outro. Quando a direção era do imaginário para realidade as coisas ficavam confusas, grandes e soltas num grande vazio que prometia transbordar permitindo novamente o seu outro lado: da realidade para o imaginário. A diferença é que no primeiro há o mundo lá fora. No segundo, o mundo já não é necessário, só o balançar do imaginário como um estar perto do Mar.
sandra & As Flutuações do Ir & Vir

Aqui, nestes porquês

Anna Karenina — Não entendo o “por quê, não” daquele instante.
O Estrangeiro — Ficou perdido, passado.
Anna Karenina — Mas nunca te perguntas pelo “por quê, não”?
O Estrangeiro — Não. Acho que é por isso que eu deixo tudo aberto. A Vida.

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Estes momentos com O Estrangeiro despertaram um sonho longo e estranho. Não sei onde está a conexão entre o nosso desentendimento e o sonho, sinto vontade de escrever sobre ele e então o faço. Tem a ver com ‘aquela' imagem que se torna instante repetido_ apenas uma armadilha para o medo. O medo se sustenta de perguntas que iniciam assim: “por quê, não”? O medo vive de repetições. As repetições não se alteram no lugar onde o medo domina, elas se alteram em lugares onde nos sentimos confortáveis para seu devir. O devir tem repetições que não estão em devir. Há uma fragmentação própria dentro disso tudo, a fragmentação que tem seu poder mais forte no que permanece naquilo que continuamente muda. A diferença de um instante pode ser tudo. A diferença no modo como iniciamos uma pergunta também pode ser tudo. Tudo para o futuro que a envolve. A diferença numa imagem pode ser tudo. A repetição dessa mesma imagem, talvez, seja tudo. O sonho: ele caminha de costas por uma rua de terra, rua estreita, é só um caminho. Ele vai com passos lentos mas decisivos, ele sabe que vai, por isso é decisivo; lento, não desejaria ir. Ele é velho, vivido, estampa isso no rosto, rugas, pele castigada pelo sol, por prazer. Ele veste sandálias hippies, bermuda e camiseta larga, ele usa correntes de linhas coloridas no pulso direito, nada no pulso esquerdo. Ele tem o cabelo fino e cinza, amarrado por um cordão de cor escura, antigo, usado muitas vezes. Assim, ele segue pela estrada, solitário, esquivo em relação à vida que circula no mundo lá fora. Seu mundo, a solidão. Seu escapismo, os outros. Alguns passos, ele vira o rosto para trás. Ele mostra então seus olhos. Eis a parte lúgubre revelada, seu olhar encerra coisas: aquelas que carrega consigo há muito tempo. É uma longa distância entre este caminhar decidido de um instante e uma vida que chegou até tal instante. Há uma pequena distância entre este instante e o caminhar decidido de um instante e de uma vida que chegou até ali. A rua é estreita, contudo, é o lugar. A diferença do instante pode ser tudo. A imagem é sempre a mesma, sua repetição torna-se a diferença do instante e então torna-se tudo, a repetição nunca é sempre igual, ela tem o estranho olhar que apaga todo o resto descrito, a imagem do olhar que se vira num movimento sutil é a diferença da imagem, é a diferença na repetição, pois centra todo o resto num detalhe que consome tudo que compõe a imagem: é o que assusta. O que assusta traz em si, embora o repetir-se, uma nova face daquilo que impulsiona o medo. O medo, não cai na repetição, ele é uma parte que existe dentro dela mas com vontade própria fazendo com que o mesmo retorne como o novo. O olhar desperta o medo, a imagem não muda, o olhar é estranho, quase sinistro, de algo que está por vir, é o olhar de quem vê de um ângulo alguns passos atrás, do início da estrada. Repetição sempre nova. Há o espanto, está “ali” e podemos visualizar mil vezes e mil vezes o medo estará presente. Mas não era um medo sempre para a mesma coisa vista? Por que não muda com a repetição? Eis a força do medo. A repetição nada pode contra ele. A repetição é sua força. Eis a armadilha, somos nós a repeti-lo uma vez mais e outras ainda e enquanto nos permitirmos. A diferença de um instante poderia ser tudo se isso fizesse diferença para o medo. Então, “por quê, não”?
sandra & As Flutuações dos Porquês