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Estes momentos com O Estrangeiro despertaram um sonho longo e estranho. Não sei onde está a conexão entre o nosso desentendimento e o sonho, sinto vontade de escrever sobre ele e então o faço. Tem a ver com ‘aquela' imagem que se torna instante repetido_ apenas uma armadilha para o medo. O medo se sustenta de perguntas que iniciam assim: “por quê, não”? O medo vive de repetições. As repetições não se alteram no lugar onde o medo domina, elas se alteram em lugares onde nos sentimos confortáveis para seu devir. O devir tem repetições que não estão em devir. Há uma fragmentação própria dentro disso tudo, a fragmentação que tem seu poder mais forte no que permanece naquilo que continuamente muda. A diferença de um instante pode ser tudo. A diferença no modo como iniciamos uma pergunta também pode ser tudo. Tudo para o futuro que a envolve. A diferença numa imagem pode ser tudo. A repetição dessa mesma imagem, talvez, seja tudo. O sonho: ele caminha de costas por uma rua de terra, rua estreita, é só um caminho. Ele vai com passos lentos mas decisivos, ele sabe que vai, por isso é decisivo; lento, não desejaria ir. Ele é velho, vivido, estampa isso no rosto, rugas, pele castigada pelo sol, por prazer. Ele veste sandálias hippies, bermuda e camiseta larga, ele usa correntes de linhas coloridas no pulso direito, nada no pulso esquerdo. Ele tem o cabelo fino e cinza, amarrado por um cordão de cor escura, antigo, usado muitas vezes. Assim, ele segue pela estrada, solitário, esquivo em relação à vida que circula no mundo lá fora. Seu mundo, a solidão. Seu escapismo, os outros. Alguns passos, ele vira o rosto para trás. Ele mostra então seus olhos. Eis a parte lúgubre revelada, seu olhar encerra coisas: aquelas que carrega consigo há muito tempo. É uma longa distância entre este caminhar decidido de um instante e uma vida que chegou até tal instante. Há uma pequena distância entre este instante e o caminhar decidido de um instante e de uma vida que chegou até ali. A rua é estreita, contudo, é o lugar. A diferença do instante pode ser tudo. A imagem é sempre a mesma, sua repetição torna-se a diferença do instante e então torna-se tudo, a repetição nunca é sempre igual, ela tem o estranho olhar que apaga todo o resto descrito, a imagem do olhar que se vira num movimento sutil é a diferença da imagem, é a diferença na repetição, pois centra todo o resto num detalhe que consome tudo que compõe a imagem: é o que assusta. O que assusta traz em si, embora o repetir-se, uma nova face daquilo que impulsiona o medo. O medo, não cai na repetição, ele é uma parte que existe dentro dela mas com vontade própria fazendo com que o mesmo retorne como o novo. O olhar desperta o medo, a imagem não muda, o olhar é estranho, quase sinistro, de algo que está por vir, é o olhar de quem vê de um ângulo alguns passos atrás, do início da estrada. Repetição sempre nova. Há o espanto, está “ali” e podemos visualizar mil vezes e mil vezes o medo estará presente. Mas não era um medo sempre para a mesma coisa vista? Por que não muda com a repetição? Eis a força do medo. A repetição nada pode contra ele. A repetição é sua força. Eis a armadilha, somos nós a repeti-lo uma vez mais e outras ainda e enquanto nos permitirmos. A diferença de um instante poderia ser tudo se isso fizesse diferença para o medo. Então, “por quê, não”?
sandra & As Flutuações dos Porquês