quarta-feira, maio 06, 2009

De como nascem as metáforas

De como é arriscado contar nossos segredos berceusianos
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Ele escreve transparente e nem ao menos mora em frente ao mar. Ele diz assim: “moras longe, pescadora”. E eu morando perto do mar sequer descrevo transparência de realidade. Ele diz assim: “conte o sonho, que sim, conte”. E eu sequer transpareço a descrição de irrealidade. Habito longe, que sim, e sequer nasci nem em frente nem perto do mar, que não. Ele possui linguagem cristalina de realidade e é lírico sem lembrar sequer de berceuses, que sim, que berceuses nos ensinam a louvar metáforas desde pequeninos e depois com elas criamos nossas vidas, a recitar, a louvar, entoar, prevenir, a trinar o canto, a ária, a canção, o hino, o poema, a ode, os cânticos, também o outro lado disso tudo e tudo sendo vida. E lembro de minha avó, entoava berceuses como se fosse ópera. Eu cresci com estranhas cantigias entoadas na penumbra e cedo vi metáforas a encerrar o dia e abrir a noite. Aprendi a metaforizar o anoitecer com berceuses entoadas em voz de lamento, era o lamento de vida de minha avó. Trinava suas berceuses aprendidas em algum lugar distante do mar. As canções, de onde?, não sei, eu só a escutava. Eu não queria aquelas cantigas. Deve ser assim que as metáforas entram em nossas sensações infantis, deve ser assim que passamos a saber o que é uma primeira metáfora: com as cantigas de nossas avós, é assim que as metáforas nascem dentro de nós. Não tenho como agradecer a minha avó pelo ensinamento que veio junto com as berceuses.
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É que tenho me perguntado onde foi que principiei com isso de metaforizar a vida, pois se eu desvelar o momento de como nasceram as minhas primeiras metáforas acredito então que consigo me desmetaforizar. Quase me convenço de que nasceram em dois tempos e um deles foi este da infância que conto aqui: a escutar minha avó desmetaforizar sua vida enquanto me mostrava como metaforizar a minha, eis ela a me mostrar: 'metáforas existem, o mundo é feito delas.' Penso que ela se fez nietzscheana pelo tempo passado em campos, muitos campos, sem ter lido uma linha sequer de filosofia.
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Difícil escrever como ele, transparente, cristalino, com linguagem que fala de si e da realidade com jeito de quem olha nos olhos, ele é lírico sem escrever furtivamente. E eu pensando que todo lírico é de alguma forma furtivo. Mas não, ele escreve sempre em três linhas, linhas lacônicas a escrever como se criasse uma trilogia composta de apenas três versos. Não é curioso?, é sim. Deve de ser. Que sim, que é curioso. Ele descobre em três tempos o que deseja. Terá descoberto o instante em que se deu sua primeira metáfora? Imaginei que ele faz assim porque o seu jeito de dividir tudo em três linhas equilibra o controle sobre suas próprias berceuses.
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“moras longe, pescadora”, três palavras, esqueci de dizer, ele sempre escreve com três palavras, e soa tão lindo e tão real. E para mim já havia soado como uma nova ber_ceu_se (três sílabas, sim?) e não posso dizer a ele, naquele instante eu me senti como uma pescadora, sem cantigas de ninar e sem metáforas, morar longe é só morar no mar. Que sim, que isso é ser como ele afirma: “moras longe, pescadora”. Terá sido minha primeira berceuse?, esqueci de dizer, quem escreve cria primeiras berceuses para tudo que vive, quem não escreve, como a pescadora, não inventa poemas, inventa mar. Não sei ainda se serei para ele poema, berceuse ou mar. Ou nada disso. Porque criar metáforas às vezes é ver 'nada disso'.
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Com tecido delicado fui longe buscar moleskine novo, fui buscar ar, flores com nome de aster, fui ao mar com anna akhmátova e palavras soando como cantigas de mar e joguei às águas ramos de áster recitando akhmátova com suas metáforas poéticas de imagens dizendo que toda a linguagem, ainda que seja a de uma simples pescadora, contém berceuses que não parecem berceuses, mas que sim, que são, embalam, entoam, e deve ser por isso que algumas cantigas são tão tristes. Algumas pessoas são como berceuses líricas, outras como berceuses mar, berceuses amarelas, alecrins, incensadas, berceuses em mutismo.
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Ele é como uma berceuse em três tempos, três versos, três palavras, três sílabas. Então eu o lembro: “moro longe, sou pescadora e cresci com as berceuses de minha avó. E lhe digo: Que sim, que te prefiro cantar em azulescente, porque canções assim têm a cor do mar, e peço com voz chorosa: 'cante para mim tua primeira metáfora.' E não lhe digo, não posso dizer, que eu sei que se descobrir qual foi sua primeira metáfora eu posso desvendar toda a sua linguagem. Mas eu ainda não consegui que ele cantasse para mim sua primeira berceuse. Que não.
sandra ádria_na
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(acredito que os deuses moram às vezes em frente ao mar, às vezes bem perto, acredito que eles ouvem o tempo todo berceuses e que também eles aprendem a metaforizar o mundo através delas, e acredito que pescadoras moram longe, que sim, que lembram de berceuses para serem embaladas para mais perto & que berceuses tiram sua permanência da repetição_ a vida também?)
[fotografia de art.com/the-first-kiss]