sábado, fevereiro 05, 2005

O esquecimento do silêncio

E a lembrança do silêncio de Levine
Na Insustentável Leveza do Ser
Era uma praia de águas calmas. Ele tem um rosto com belos traços fortes. Seu silêncio lembrava a Anna a praia com suas águas silenciosas. Levine quase não falava. Anna se voltava então para o que tinha vivido e se perdia em recordações, não conseguia descrevê-las. Acontecimentos em si mesmos não precisavam de abstração, ela não sabia descrever estados de vida sem abstrair. Como uma criança que não sabe ainda articular palavras, a exigência das descrições lhe exigia uma energia que estava longe de possuir. Qualquer pessoa conseguiria fazer isso, ela não, por mais esforço que fizesse, o resultado era frustrante. Como descrever algo que é uma abstração do pensamento, pois exige uma volta ao não-empírico, e ao mesmo tempo não é uma abstração porque aquilo que deveria ser narrado deve ser feito por um ponto de vista não-abstrativo, porém simplesmente vivido? _ um pseudo ponto de vista não abstrativo. Então duas coisas diferentes se passavam com ela nesses instantes: o pensar o passado era um pensamento e portanto abstrato, mas o acontecimento X precisava ser narrado como se não fosse abstrato. Deveria remeter a um discurso completo em que Levine pudesse captar com uma certa linearidade o que ela dizia. Talvez ele estivesse pensando que ela estava brincando. Parecia estar, mas não. Sempre parecia quando aquilo que estava indo nos seus pensamentos iam no extremo oposto de uma não-brincadeira. Por outro lado, precisava confessar, eram momentos interessantes. Ao mesmo tempo suaves e densos. Fácil de se perder, fácil de confundir a luz com a escuridão. Permissão para perder-se.
Observou-o por alguns instantes quando ele se deteve a ler algo nas folhas que segurava, ficou olhando, olhando... ele fora um estranho que a acolhera de forma agradável e não estava lhe pendindo nada, somente que esquecesse seu silêncio, Anna & o esquecimento do silêncio. Só isso. Ela precisava esquecer o que ele lembrava todo o tempo de ser. Mas como faria isso se o modo de ser silencioso dele a fazia lembrar do seu próprio o qual, destinado ao esquecimento, acabava causando uma profunda sensação de abandono de si mesma? Quando levava uma das folhas da planta que lá estava, julgava levar algo de si junto. Algo que deixara com Levine, mas que pertencia a ela, a folha representava o símbolo desse retorno, do que sentia perder e reencontrar neste curto espaço de um diálogo sem duas vozes. A pequena folha esverdeada era como que a testemunha do silêncio reencontrado. Saía com passos leves. Os de Levine talvez fossem mais leves que os dela. E a leveza do ser não era algo sustentável, Kundera nos joga no fatalismo de que não é possível sustentar aquilo que conteria o mais belo de nós mesmos, a vida virando a sua outra face ao esperarmos a liberdade do fluir, a beleza que desejamos é essa suavidade de nosso ser, mas quando ela chega, não mais gostaríamos que estivesse ali. Não é sustentável. Kundera seria grande se tivesse escrito somente o título do livro.
Ela não queria ter que morrer para si própria. Pois, o que poderia surgir depois da leveza do ser se fosse possível sustentá-la?
sandra & as divagações sobre A Insustentável Leveza do Esquecimento do Silêncio