sexta-feira, fevereiro 18, 2005

Fragmento Faces & Duplos

Ele de preto. Ela de branco. Lembrou do texto sobre Goethe, lido na adolescência, sobre a polaridade necessária ao movimento da vida_ a polaridade e não o dualismo, pois este separa, divide enquanto que a polaridade significa a existência de dois pólos opostos que ainda assim não se pode separar, um necessita do outro para continuar existindo. Anna lembra do exemplo sobre a felicidade, dada no livro de Simmel, "eu desejaria ser sempre infinitamente feliz, ora, este é um desejo insensato e impossível, pois só podemos ser feliz por pequenos lapsos de momentos, se o fossemos sempre ou por toda a vida nunca o teríamos sido. Só pela polaridade se percebe a existência de alguma coisa. O preto dele, o branco-provisório dela, e a folha alterna duplicada em pensamentos soltos de Tolstoi: "não sabia ela antecipadamente que a religião lhe exigia o dever de renunciar ao que para ela representava a sua única razão de existir? Sofria e, além disso, admirava-se de um sentimento novo e desconhecido até aí, que lhe parecia apoderar-se do seu interior; sentia-se dupla como às vezes os olhos cansados vêem dois objetos, e já não sabia o que receava, nem o que queria. Era o passado ou o futuro? O que desejava ela?"Olhou para a folhagem o tempo todo? Sabia realmente porque as folhas atraíam tanto seu olhar por sobre elas? A planta ainda estava lá, pensou no que sentiria se a planta fosse retirada do seu lugar de sempre. Entristeceu-se com esse pensamento, como às vezes os olhos cansados vêem dois objetos, seus pensamentos vêem de forma dupla, passado e futuro e não sabia o que ainda desejava. Seu desejo era também duplicado? _ o mesmo desejo para a realidade e para as abstrações. Talvez isso fosse totalmente impossível. Um desejo para o empírico e outro para o abstrato?, pois, conciliá-los seria eliminar o "sentir-se" dupla com o coração cansado e os olhos intactos, com seus receios cansados e os pensamentos-observativos. Lembra, então, do quadro que ele ganhara de presente naquela noite, uma pequena gravura/pintura com duas faces um pouco estilizadas em uma leve abstração, em tons de verde, como as folhas. A expressão era interessante se olhassemos demoradamente, uma delas, parecendo de uma menina, olha para longe com ar distante, meio etéreo, a outra expressão parece com a de um menino, olha para o mesmo ponto que a menina, mas seu olhar é mais grave, denso, enquanto a menina é leve em sua tristeza, o menino está profundamente imerso em sua tristeza_ que é comum aos dois_ ela pergunta então a ele: a pessoa que deu este presente para você, ela é triste? Tem muita tristeza na pessoa que trouxe esta gravura para você? Como é a tristeza dela? Como a expressão da menina, suave e sem saída, ou como a face do menino, grave e centrada em sua própria dor, ainda que a olhe de longe. Ambos abstraem-se da tristeza-mesma ao mesmo tempo, onde está a diferença da dor refletida em seus rostos? "O rosto calmo e pensativo parecia refletir uma alma elevada". A cor dele era, sem dúvida, o preto, mas não era o preto do luto e, sim, o preto que os nietzschinianos passam a usar quando sentem que sua "existência encontrou com a humanidade", é a cor de ser-nobre consigo, antes, e com o mundo, depois, é a cor que disfarça uma bela alma que pensa em se esconder entre as coisas de um mundo que ora ama e ora despreza. Jeito de ser que "torna tudo nesta noite encantadora, encantador." Anna levanta, pergunta pelas folhas-decaídas, resolve levar duas em homenagem às duplas surpresas da noite: pela gravura de uma tristeza que não conseguiu alcançar e pela seu olhar-de-dupla-visão sobre as coisas vividas ali, uma diálética sem síntese, simplesmente suave a apontar para uma imagem do próprio "céu a tornar-se pouco a pouco luminoso e dum azul firme a responder com mais suavidade e menos mistério ao seu olhar interrogador."
Entre Folhas-Alternas & Faces Duplicadas-em-Gravuras