terça-feira, junho 16, 2009

A mulher do cotidiano

Eu me casei com a mulher do cotidiano, casei por opção, consciente de minha escolha, se foi heroico de minha parte ainda não sei. Com o tempo descobri que a mulher do cotidiano é muito mais perigosa que as metidas a filósofas, por exemplo. A mulher do cotidiano presta atenção aos mínimos detalhes, nada passa sem ser visto, o tempero a mais ou a menos na refeição que prepara cotidianamente, a casa que decora nos mínimos detalhes, as roupas dobradas e guardadas com todo zelo, inspiram a mulher do cotidiano a ver detalhes onde não existem e a ver muito mais onde algo se insinua, ‘e aquele olhar, eu vi você olhando...’, ‘e o sorriso...?’, ‘e aquelas palavras, nunca tinha visto você usá-las para ninguém’. Qualquer coisa que seja exterior ao seu cotidiano é um detalhe de algo fora de sua vida, a do todo dia. A mulher do cotidiano cuida todo sinal do amado como se fosse tempero a mais ou tempero a menos que mede a fidelidade e o amor. Ela transfere os ‘cuidados’ e toda transferência, sabemos freudianamente, acaba em confusão. Acontece que nem todo sentimento transferido é percebido em seu percurso, mas vejamos a fala de uma mulher do cotidiano que entende de transferência: ‘agora, neste instante, estou com ciúmes, faz mais de uma hora que ele está de papo com aquela ruiva, toda esbelta e cheia de olheiras, pois sim, então, no caminho de volta para casa, eu vou pensar em transferir o meu ciúme para outra ‘coisa’, e será bem ‘isso’, essa ‘coisa’ que arrumarei para colocar a culpa que será o assunto da noite, discutiremos a relação a partir daí. Só preciso escolher a ‘coisa’ ou o ‘isso’ onde vou colocar o que realmente penso como sendo ‘essa’ outra coisa. Depois, nem toda transferência é negativa, pode ser muito saudável, vou dar um jeito para que a minha se torne saudável.’
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Mas foi por opção que me casei com Clara, a mulher do cotidiano que eu pensava ser inofensiva. A mulher por quem eu era apaixonado, a Rita, não era do cotidiano, dizia-se ‘universalíssima’, ‘abstrativa’, e essas coisas que tanto afrontam ao ‘nosso’ cotidiano. Mas não era tão perigosa, quando havia um sinal, no lugar do ‘e aquelas palavras, nunca tinha visto você usá-las para ninguém’, ela passava batido, via outras coisas ‘mais profundas’ e ‘dignas de serem discutidas entre duas pessoas’, muito além da simples mesmice, o que seria um detalhe a transformar-se em explicações infindáveis, virava uma teoria bem charmosa, meio fora da realidade, mas um tanto divertida, tenho que admitir, passei horas adoráveis ouvindo muita doideira. Além do mais o que poderia ter sido um flirt paralelo virava motivo para especulações filosóficas e com isso eu tinha passe livre para alguns exercícios de sedução bem debaixo do nariz-filosófico de Rita e eu me sentia o maior sedutor a ponto de toda uma aceitação conformativa virar, em vez de briga, uma teoria très charmant. Um dia ela, A Rita, a filósofa, me disse: ‘eu só me casaria com um homem que me fizesse amar até mesmo os detalhes do cotidiano, todo o cotidiano, sem que eu percebesse que cheguei a amá-lo, só me casaria com este homem.’

Não tinha a menor idéia de como faria uma ‘universalíssima’ e ‘abstrativa’ amar o cotidiano composto de pratos, louças, detergente, fraldas, ferro de passar roupas, Rita desatinara como nunca naquela última noite em que nos encontramos, ‘a Rita levou meu sorriso no sorriso dela, levou junto com ela e arrancou-me do peito, causou perdas e danos...’ Casei-me então com Clara, que manjava tudo de detalhes do cotidiano e para quem eu não precisaria ensinar nada. Queria um amor fácil e tranqüilo das louças espumantes em detergentes líquidos e o sol da manhã sobre a toalha florida para o café da manhã. Nunca mais vi a Rita, a ‘universalíssima’, que 'levou os meus planos, levou meus vinte anos, o meu coração.' Em compensação hoje percebo o perigo da mulher do cotidiano: vê detalhe em tudo, não preciso ensinar nada a ela, é verdade, pois vê sempre mais do que é para ver e ainda por cima ‘todo dia ela faz tudo sempre igual’, a mulher do cotidiano. E eu?, nunca mais tive aqueles instantes de flirts que viravam teorias mescladas com aspas e as invencionices de Rita.
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Será que Rita continua por aí a desatinar? Será que Rita sarou do desejo de casar com um homem que a fizesse amar o cotidiano? Será que Rita viu morrer alegrias e rasgar fantasias nos dias? No seu mundo de cetim, assim, debochando da dor do pecado, do tempo perdido, do jogo acabado', terá cansado de teorizar seduções que aconteciam bem debaixo do seu nariz-filosófico? Se alguém souber de Rita me avisem, estou precisando escapulir um pouco dos particulares detalhes do
‘todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã....’
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sandra ádria_na

À menininha que só entrava no mar à noite

A menininha que só entrava no mar à noite &
À menininha que só entrava no mar à noite

Calor, sol, ondas cristalinas e calmas. Verão. Crianças brincando na areia. Conheci uma menininha que só entrava no mar à noite. Nem sol ou calor conseguiam que Kaka entrasse no mar à tarde. A menininha de dois anos só queria saber de mar à noite. Mas, por quê? É a nossa primeira pergunta. Por que uma menininha de dois anos só gostava de entrar no mar à noite? Ela não conseguia explicar, era muito pequena ainda para nos dar uma resposta toda lógica e cheia de justificativas que satisfizessem a nossa consciência de adultos. Ela dizia ‘não’ para o mar durante o dia e ‘sim’ para o mar durante a noite. A mãe dela pensava, assim como pensamos nós os não-mais-crianças, que à noite ela não enxergava a imensidão do mar, não via muito bem as ondas, então ela adorava brincar no mar noturno.
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À menininha que só entrava no mar à noite:
Tu adoravas o barulho das ondas e então não carecia de vê-las?

À menininha que só entrava no mar à noite:
À noite perguntávamos a ti: ‘e então Kaka, está gostoso o mar?’
‘Sim, de noite tem ondas’ — nos dizia.

À menininha que só entrava no mar à noite:
À tarde perguntávamos a ti: ‘e então Kaka, vamos entrar no mar?’
‘Não, eu tô esperando chegarem as ondas’, — nos explicava concentrada na espera.
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À não-mais-menininha que só entrava no mar à noite:
O que será que imaginavas tu sobre uma onda? O lado amigo do mar?, ondas amigas só apareciam à noite? Talvez, o som das marés e sua imagem difusa, alterada com os reflexos que a lua colocava por sobre o mar, representasse o verdadeiro mar.
‘Esse mar que vive à tarde, esse eu não quero!’
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Que sim,
dizem que as crianças entendem muito das coisas da vida pela intuição e que a intuição vai se perdendo e, após os sete anos, isso se dá velozmente, em pouco tempo a intuição é apenas uma lembrança distante, confusa, como muitas lembranças o são assim tão assemelhadas com as formas da noite. Eu acho que deveríamos ‘seguir’ a percepção de vida dos pequenos, como seguimos há muitos anos atrás, a menininha de dois anos que só entrava no mar à noite. Pois à noite as ‘suas’ ondas sempre estavam lá: no mesmo mar para ela. Será que é condição de possibilidade para que algo esteja 'sempre' no mesmo 'lugar' que não o possamos ‘ver’ como tudo aquilo que vemos no formato da luz do dia?
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Eu me vou a passear no mar à noite. Seguir aos pequenos e suas intuições preciosas. Obrigada, Kaká, pelo ensinamento.
[Kaká hoje é advogada, podem contratar, era corajosa desde pequenina]