terça-feira, janeiro 18, 2005

A leveza do universo na face de uma pessoa

Hoje Anna sentira a leveza de toda a vida do universo na face de uma pessoa. Recordou novamente a frase de Platão, as coisas belas são difíceis. Existe muita beleza na vida ao vermos que uma pessoa assim existe. Perguntou-se, enquanto o observava servir uma taça de café preto, se toda aquela serenidade tinha lhe custado um alto preço ou se era uma bondade espontânea. Mas logo se esqueceu desses pensamentos e se concentrou na razão pela qual fora até "lá" e quanto isto lhe custaria_em sensações_nos momentos paradoxais.
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(...) enquanto atravessava a praça para pegar um táxi, passou por duas senhoras já com uma idade bem avançada e pela criança que segurava nas mãos de uma delas. As três ficaram olhando fixamente para Anna ao mesmo tempo, demorou também seu olhar por sobre elas e sentiu-se profundamente egoísta e insensível. Estava indo conversar com uma pessoa centrada, silenciosa, de alma e coração limpo. Nem sabia exatamente porque estava indo, só intuía que deveria ir e aceitara o fato. O olhar observador das duas mulheres, mais a criança, acabaram por lhe dar uma sensação desconfortável. Olharam como se soubesse o que iria se passar ou como se soubessem o que se passava dentro dela. Por um breve instante pensou que a cena teria algo a dizer sobre os passos que estava dando. Possuíam rostos indígenas e pareciam não ter para onde ir. Lembrou das palavras de S. : "você caminha com passos de índio (a), suaves, quase imperceptíveis". Isso me fez recordar D. Juan, o personagem central da Erva do Diabo, então, será que deveria fazer o mesmo que Cas? E ao chegar "lá" procurar o "ponto" onde seria possível iniciar o "conhecimento"? Pensou a seguir no ponto cego, que surge repentinamente e como se fossem dedos, tocando em nossa pele pelas costas nos causam um tremendo susto. Seu ponto não seria cego, nem a assustaria. Enquanto esperava o portão abrir observou um homem, que estava à beira-mar, empurrar seu barco para dentro da água e remar lentamente entre as pedras e as gaivotas do entardecer. Observou suas costas enquanto remava e ia se distanciando mais e mais. As costas relembraram mais uma vez o ponto cego, julgou que se o homem do mar fosse tocado não se assustaria. Talvez porque sua imagem, de alguém se distanciando da terra firme lhe levasse para longe, como se partisse para uma nova vida ainda que logo após retornasse, ainda que fizesse esse caminho todos os dias e na mesma hora ele parecia estar a salvo de "pontos cegos". Essa imagem de alguém de costas que se distancia sempre lhe chamava a atenção. Sempre única. Vida no movimento ausente do distanciar-se inverso, quando as pessoas se olham face a face e então os passos vão sendo dados em direções opostas. Talvez seja sereno alguém “ir” solitariamente sem antes ter que oferecer sua face para uma despedida. Sim, era belo ir só e tão somente só, silenciosamente. Viu P. parado na porta enquanto caminhava na direção oposta, entrou... passou por ele sem o cumprimentar mas na hora não percebeu que cometera tal indelicadeza. Ainda sentia a imagem. Não sabia como fora parar primeiro em um lugar e em seguida em outro de forma tão rápida. Sentia-se surreal. E esperava a sensação de surrealidade passar, então percebia que passava de uma circunstância para outra, um labirinto surreal, era assim o sentido que atribuía a sua vida nos últimos tempos. Percebeu que sua tentativa de produzir um ponto cego não a convencera o suficiente para continuar com tudo aquilo. Se saísse e fosse andando com "passos de índio" mais o "distanciar-se leve do pescador" é provável que não mais voltasse. Mas a tranquilidade de P. fez com que desistisse da idéia. Estava oscilando demais em seus pensamentos e não conseguia ordená-los de forma lógica. Encontrara o ponto cego, mas aliado a leveza que vira sentiu-se desconfortavelmente entorpecida. Como mãos que tocam pelas costas insistindo em que centremos nosso olhar somente nelas enquanto à frente possuímos um outro caminho, feito de palavras e imagens. Qual seria então seu preço de não continuar olhando para o "mesmo"?
Ao sair sentiu o cheiro do mar. Ao retornar não viu o pescador, nem as duas mulheres com a criança observadora. Comprou cigarros de creme. Ficou imaginando se ao dar as costas para o senhor da tabacaria, sentiria ele algo diferente de um simples virar-se ou se também como Anna, ficava divagando com coisas sem importância aparente.
Foi dormir muito mais tarde ainda pensando em pontos cegos, achou, por fim, que eles sempre têm algo a ver com derivações abstratas.