domingo, abril 05, 2009

Leite Derramado de Chico Buarque



Leite derramado de Chico Buarque,


De como oferecer rosas às próprias lembranças

Minhas sensações da leitura sobre Leite Derramado: generosidade de ser de Eulálio, generosidade de lembranças de Eulálio. Mas, posso explicar pelas e além das sensações de como é possível oferecer rosas às próprias lembranças:

Um paralelo inicial: enquanto Matilde talvez tenha traído e some sem que Eulálio ou o leitor saibam o porquê, enquanto Eulálio rememora sua vida num vai-e-vem, que a princípio o leitor pode pensar que será confuso, surpreende e surpreende porque a narrativa se desenrola de forma que o leitor vai ‘interiorizando’ as lembranças da personagem, com espontaneidade a forma como Eulálio lembra é o que faz da personagem uma personagem encantadora. Eulálio se torna inesquecível pelo avesso de Dom Casmurro, assim, as diferenças entre um e outro em seus modos de ser são inúmeras.

Entre uma interiorização e outra: interiorizei um Eulálio pleno de generosidade, ainda que em suas lembranças ele aponte para o ciúme que sentia de Matilde, ainda que rememore uma possível traição, e ainda que haja paralelo com Machado de Assis, em especial com Dom Casmurro, Eulálio, narrador do livro, em minhas impressões soou completamente diferente: o extremo oposto de Bento Santiago. Se há crueldade no narrador não é em relação aos descendentes, que na história são muitos, mas na sua ancestralidade, a mágoa maior de Eulálio sugere muito antes seu pai do que a própria Matilde. Uma marca do antes, para Eulálio, uma marca do depois, para Bento Santiago.

Ciúme distinto: talvez a única aproximação com Dom Casmurro seja a abordagem do sentimento de ciúme, o chamamento ao tema do ciúme, contudo Eulálio parece tentar acomodar isso dentro de si e de sua vida com Matilde, segundo a sua própria definição do que seja o ciúme, que, aliás, além de profunda e imensa, deseja proteger o amor à Matilde: “Com o tempo aprendi que o ciúme é um sentimento para proclamar de peito aberto, no instante mesmo de sua origem. Porque ao nascer, ele é realmente um sentimento cortês, deve ser logo oferecido à mulher como uma rosa. Senão, no instante seguinte ele se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta. O ciúme é então a espécie mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa da sua feiura. Sabendo-se desprezível, apresenta-se com nomes supostos, e como exemplo cito a minha pobre avó...” Eulálio então não soluciona para si a questão do ciúme? Diria que sim, pois em várias passagens de lembranças descritas em que Matilde o poderia estar traindo, o que faz Eulálio? Vai conferir, sobe escadas, corre na areia com seus sapatos de escritório, pesados e sujos de areia, escancara portas, Eulálio tenta oferecer a ele e a Matilde ainda o ciúme do peito aberto, do sentimento cortês, como uma rosa que se oferece, o ciúme da origem é vivido. Recusa-se ao ciúme que põe nos outros a culpa de sua feiura. Parecido com Dom Casmurro? Para mim, não. Eulálio possui desejo de proteção ao longo de suas descrições-em-lembranças, não era homem para raivas que se perpetuam ao longo de toda uma vida como o foi Bento Santiago, não era homem que deixasse fermentar a feiura que tomou conta de Dom Casmurro, Eulálio é de grandiosidade de ser, lembra mais de perto Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, que comove, do que Bento Santiago, em Dom Casmurro, que nos dá a feiura da crueza da vida, que sequer tenta proteger o amor que diz sentir por Capitu, que nunca a lembra senão para humilhá-la mais ainda em sua memória que de instante em instante se fecha em repolho, e dentro dele todo o mal fermenta, fermentou, Dom nos dá o ciúme da espécie mais introvertida das invejas, e mordendo-se todo, põe nos outros a culpa da sua feiura, a culpa da feiura em Dom se chama Capitu e mais tarde se chamará também Ezequiel. Eulálio é ser humano da origem do ciúme, enquanto que Bento, ser humano do instante seguinte, e não só, seguido de todos os outros instantes seguintes até que seja ele o único sobrevivente de suas mazelas interiores, paranóicas e cruas e sem nenhuma grandeza ou comoção de vida. Só por esta definição já é possível separar as águas de cada ondulação que faz o modo de ser de um e outro. Enquanto um protege e recorda ainda amando, o outro destrói e recorda fermentando o ciúme em nomes supostos.

O querer ver e o não querer jamais rever: em todo o decorrer da narrativa, existe Eulálio embalado por uma esperança em rever Matilde, existe nostalgia pelo amor de Matilde, Eulálio embora o ciúme, acaba chamando a mulher com quem se casou, através de uma lembrança doce, comovente. Bento chamava Capitu pelas memórias amargas de seu talvez-que virou-certeza, pleno de mágoas e ressentimentos, não há em Dom Casmurro espaço para uma memória doce e comovente. Eulálio possui memória de comoção, sempre dá um jeito de absolver Matilde do que poderia ter sido.

A proteção aos descendentes: existem tentativas de Eulálio em dar uma resposta à filha, Maria Eulália, que torne a mãe, Matilde, aos olhos da filha, distante da possibilidade do ‘talvez tenha partido com outro’. Eulálio quer proteger Maria Eulália aos olhos da memória, sua memória e de Maria Eulália. Ao longo da história fornece a ela explicações que não são verdadeiras, talvez possíveis, já que ele não sabe o que foi feito de Matilde, para evitar o sofrimento da filha. Chega ao ponto de levá-la ao cemitério para provar que Matilde não só existiu como já morreu, morrera no parto diz ele, para tornar a mãe aos olhos da filha, uma heroína. Aliás, ele se mostra compreensivo com as doideiras que Maria Eulália vai fazendo ao longo da vida, em nenhuma passagem lembro de ter lido Eulálio criticando a filha Maria Eulália. Bentinho não teve intuitos de matar Ezequiel, seu próprio filho? Não o mandou embora para nunca mais revê-lo? Bento se netos, bisnetos e tetranetos, tivesse, os teria enviado à Europa junto com Capitu e Ezequiel para nunca mais sabê-los, e caso retornassem, como assim fez Ezequiel, teriam todos na face traços ancestrais de traição.

A generosidade de Eulálio: que não manda nenhum dos seus embora, antes pelo contrário, acolhe sem reclamações, cuida dos seus (sem saber sequer da origem certa de um deles que nascera dentro da prisão), com placidez. Conseguem imaginar Bentinho em situações como as que Eulálio relata ao longo de suas memórias? O que faria Bento Santiago? Não faria, jamais acolheria os descendentes que tivessem em seus rostos uma possibilidade de traição e incertezas de origem. Eulálio e Bento não pertencem à mesma esfera de lembranças. Mesmo em meio ao apego de sua ‘estirpe’ familiar, e à decadência da família, no penúltimo capítulo, no penúltimo declínio a que ele e Maria Eulália poderiam chegar por conta das inconseqüências do filho, do neto, bisneto (e inclusive da própria Maria Eulália que ajuda a dilapidar o patrimônio e o nome de família), ainda assim, há espaço para a generosidade, um despojamento do modo de ser que nos vem a todo instante e até o final da narrativa permeada de pensamentos pós-lembranças. Contudo são ainda lembranças de lembranças de lembranças sob o ponto de vista da forma narrativa, de modo que comove o leitor. E Matilde é quase sempre desculpada por uma lembrança posterior àquela que seria a lembrança de origem para raiva ou ressentimento, Eulálio oferece rosas à Matilde durante toda a narrativa, enquanto Dom Casmurro-Repolho não faz mais que fermentar o pior dentro de si.

Pode ser que minhas sensações sejam simplistas, pois não sou crítica literária, mas sou humana e assim senti Leite Derramado, assim vivi Eulálio. E vale lembrar que uma de suas últimas lembranças é de sua Matilde, jovem, puxando os cabelos para trás e com os olhos apertados para não entrar água do banho. A última lembrança de Bento, todos sabemos qual foi, sim?, pois acaba em um círculo completamente fermentado de ciúme e crueldade humana.

Algumas passagens das proteções de Eulálio:
“mas concluí que não valia a pena, Matilde ficaria encabulada naquele meio” (...) “gostaria que sobretudo Matilde me sobrevivesse e não o contrário” (...) “Matilde espírito simples” (...) “Matilde era leve de espírito” (...) retornaria de suas aventuras “confiando no pronto perdão de seu marido”, Eulálio sabia que se ela voltasse ele lhe perdoaria.

Com tudo isso que fui sentindo ao longo do livro, que li em poucas horas porque não conseguimos parar de acompanhar as memórias de Eulálio, Dom Casmurro e Eulálio soaram para mim como extremos. Quem sabe seja o autor, de espírito leve, denso? O fato é que em Eulálio é difícil encontrar traços daquele dizer “a vida é crua, faminta”, ainda que a vida seja crua e faminta como foi, todavia, para Eulálio, ainda assim observou-lembrou-amou-viveu sem fermentar a crueza que a vida lhe impôs. Não é isto a vida?, alguém há de perguntar, a crueza não é tão sempre aí, presença, gritante e espargida por todos os lados? Sim, talvez, quem sabe, mais para uns, menos para outros, talvez tudo dependa daquilo que Chico Buarque escreveu sobre a memória: “... não sei mais de que banho estou falando. São tantas as minhas lembranças, e lembranças de lembranças, que já não sei em qual camada da memória eu estava agora. Nem sei se eu era muito moço ou muito velho... você se esqueceu do meu beijo, não tirou minha febre, partiu sem cantar minha berceuse.” Quem sabe se não é a memória que escolhemos para lembrar que nos faz ser?, ou ser pouco, ser muito, ou ainda nada ser, são tantas as formas de se ser e de ser o outro que lembranças de lembranças podem ser embaladas anacronicamente como uma berceuse.

Portanto, não vejo nas memórias de Leite Derramado, a forma das memórias casmurrianas. Ao menos para mim, não. Prefiro ver Eulálio estendendo sua rosa à sua Matilde e à sua Maria Eulália e ao Eulalinho e ao, tantos nomes que também esqueci, mas comoção vivida não se esquece. E nessas alturas penso que nunca mais vou abrir Dom Casmurro. Prefiro aprender com Eulálio como oferecer rosas à própria memória ao longo de cem anos sem fermentar as mazelas da vida, de modo a oferecer à memória, de instante a instante, aquela lembrança de ‘como se em dez minutos passasse por seu rosto uma tarde de sol. A um palmo de distância dela, eu era o maior homem do mundo, eu era o Sol’, linda lembrança que Eulálio faz de Matilde e de si próprio. Porque desejo ser como Eulálio, desejo as rosas em minhas lembranças.

Como lhe disse Matilde quando se conheceram: “vai, Eulálio”! Vai, porque Bentinho apenas iria casmurriar para Capitu: ‘nem uma lágrima, derramei por você’.
by sandra ádria_na fasolo





(A obra pode ser vista como uma ficção quase absoluta se pensarmos que memórias como as de Eulálio são raríssimas, talvez seja para poucos, pouquíssimos.)