domingo, outubro 23, 2005

o brilho-outro do olhar de diadorim em imagens de deslembro

anna karenina & riobaldo dialogam sobre grande sertão: veredas
o brilho-outro do olhar de diadorim em imagens de deslembro
o lado "outro" de imagens que vêm fantasiadas pelo deslembro
*
Riobaldo_ ‘Inda tudo que contei não me deu certeza de nada, depois que descobri quem Diadorim realmente era, o meu amor foi na idéia de outro jeito. Mas isso não explica a origem do amor, explica somente que eu não precisava ter entrado naquelas de eu estou meio perdido. A origem do que eu sentia por Diadorim ‘inda não compreendo, Anna. Será que era destino mesmo?
Anna_ Penso que essa sua divagação, Riobaldo, é mais complexa que aquela que envolvia seus pensamentos enquanto Diadorim ainda estava viva e ao seu lado. É bem triste isso, momentos equivocados da vida, quando você a tinha ao seu lado e enquanto ‘brigava’ com o que sentia por ela, todo esse amor foi denegado em função de idéia que ia na sua mente. Deixou-se levar por algo equívoco. Quando teve permissão para viver o amor ela já não estava mais aqui. Parece mesmo brincadeira da vida. Os gregos acreditavam em moira, principalmente quanto ao amor. O problema é que isso vinha lado a lado com o trágico.
Riobaldo_ E num foi trágico não? Beijei os lábios de Diadorim já sem vida. Ela ali, sem vida, foi quando beijei pela primeira vez... e no lembro dessa imagem me vem junto o lembro-deslembrado de outra cena vivida, no dia em que fui até à beira dum fogo, onde Diadorim estava... naquele instante olhei bem para ele, de carne e osso; eu carecia de olhar, até gastar aquela imagem falsa do outro Diadorim, que eu tinha inventado. Foi quando eu pensei: estou meio perdido. E você vê, Anna, num era imagem falsa não e nem não inventada, tomei por falso o que era verdadeiro e possuía grande luz, Diadorim tinha luz.
Anna_ Sim, tem sua tragicidade. Mas veja, ela contribuiu em grande parte para você pensar que ela não era quem era. E penso que ela amava você também. Isso de Diadorim ter escondido quem era não compreendo direito. Misteriosa não? Devia haver algum princípio maior que o amor para ela agir como agiu. Tem mais o fato de que ela estava no sertão, no meio de jagunços. Talvez tenha sido o único jeito que ela encontrou de ficar perto de você.
Riobaldo_ Ainda sinto muita tristeza de quando lembro da última imagem de Diadorim. Mas já caiu tantas e tantas vezes no deslembro a cada vez do lembro, que a imagem foi se apagando, ficando difusa, acho até que alterada. Cada deslembro levou Diadorim um pouco mais longe de mim. Se pudesse não lembrava mais não, mas a gente nada pode contra vontade de coração. É isso que me faz deslembrar Diadorim todos esses anos após a sua morte. Hoje, o verde dos seus olhos têm um brilho na imagem que eu sei que foi por conta de tanto deslembro. Eu que dei esse brilho novo para o olhar de Diadorim depois de tudo.
Anna_ Como Riobaldo? Você deu um brilho novo a ela depois de morta? O que há nesse olhar de Diadorim que é diferente daquele descrito na sua narrativa?
Riobaldo_ Talvez seja o olhar que eu desejei ver nela quando olhasse para mim com seu verdadeiro ser. Como amar o verdadeiro no falso? É o olhar que eu sei que ela teria se tivesse podido me olhar do jeito que eu descobri que era. É o brilho do verdadeiro sem o falso da imagem. Isso me traz medo em alma, Anna. ‘Cê já teve medo em alma por causa de sentimento que vai crescendo no coração? Não é só idéia que vai ajudando e vai tomando conta não. Sentimento também. Diferença está que no sentimento que cresce a gente nada percebe não, quando vê ele ta ali, imenso. Pelo menos idéia a gente vai acompanhando e vai se preparando para o depois. Sentimento é que dá medo em alma, desses que vêm no silêncio e no lento. Diadorim adorava silêncio. Será que ela tinha medo em alma o tempo todo?
Anna_ Quem não tem, Riobaldo? Quero dizer, talvez existam diferentes tipos de medo em alma como em relação à felicidade. Você já terminou de ler o capítulo VI da Ética de Aristóteles? É mais ou menos por aí, eu acho. Vale para a felicidade, então vale para tudo, para o medo também.
Riobaldo_ Num terminei não, Anna. Num gostei muito de Aristóteles, acho até que ele ia se dar mal no sertão, a não ser que ficasse caçando borboletas e tentando catalogar aquela imensidão de buritis. Ia ser um bom biólogo no sertão, mas filósofo, sei não, a jagunçava não ia querer ele por perto muito tempo. Depois esse tal de Aristóteles não ia conseguir compreender que a vida é tudo certo tudo incerto, quem "cataloga" demais a vida não admite variações outras, e isso é o que mais tem no sertão. Mas vou terminar de ler ele, Anna, só porque agora desejo saber sobre a sabença aprendida de medo em alma.
Anna_ sorri da não-simpatia de Riobaldo pelo mestre estagirita_ ficou imaginando Aristóteles em meio aos buritis e toda aquela variedade de fauna e flora do sertão com Riobaldo como guia de Aristóteles. O que será que teriam conversado?_ mas se limitou a repetir uma frase de Riobaldo sobre o amor. _ Riobaldo, você lembra quando disse que era como se tivesse de caçar emprestada uma sombra de um amor? e então você associa o amor que vem como destino como algo mal, medo mal em ilusão.
Riobaldo_ Eu troquei tudo Anna, o amor feito destino era a parte linda da minha vida. Perdido. Acho que por causa dessa perda que me corrói por dentro é que coloquei um brilho-outro no olhar de Diadorim. Pior que perder sentimento por alguém é perder alguém e o sentimento continuar lá, mais vivo que nunca. Essa é a perda mais difícil de suportar. Quase que nunca mais que eu quis viver. Tem que substituir a perda para não cair só em reza, ‘cê já sabe Anna, o que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. ‘Cê, Anna, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. Quando beijei Diadorim sem vida foi que comecei a rezar tudo quanto há, rezei muito depois que minha Diadorim se foi. Depois de um tempo principiei a substituir por imagens que consolassem saudade de coração. Viver é muito perigoso, Anna.
Anna_ Mas você casou, Riobaldo e foi muito feliz. Será transferência de amor em imagens outras?
Riobaldo_ Nonada, Anna. Já tenteou sofrido o ar que é saudade? Diz-se que tem saudade de idéia e saudade de coração, mas saudade de imagem vivida num sei não nem de onde que vem. Mas eu não usei a imagem de Otacília para substituir a de Diadorim. Toleima isso, Anna, vindo de você toleima maior ainda. ‘Cê é dificil de aprender algumas coisas da vida, foi porque não morou no sertão, então mistura tudo. Vá lá, verá, eu só deixei ir na mente outra imagem do olhar de Diadorim, em vez daquele que eu já amava muito naqueles olhos e tanto de Diadorim, onde o verde mudava sempre, como a água de todos os rios em seus lugares ensombrados. Aquele verde, arenoso, mas tão moço, tinha muita velhice, muita velhice querendo me contar coisas que a idéia da gente não dá para entender — e acho que é por isso que a gente morre. E digo a você, Anna, eu deixei idéia ir ajudando o sentimento e criei um outro brilho no olhar verde de Diadorim, que é de felicidade junto com aquela tristeza meiga e muito definitiva que sempre tava junto com ela, para eu poder ficar menos sem dor e deslembrar a sensação de que é por isso que a gente morre. Diadorim tinha medo em alma? Você já fez isso Anna? Não é difícil quando a gente fica só no deslembro que vem pela tristeza. A própria tristeza dá um jeito de mudar o deslembro para não consumir a gente em idéia certa de imagem. Salvação de alma ta no lembro deslembro que vai principiando por outras veredas do pensamento.
A. É Riobaldo, você e Aristóteles não teriam tido muita coisa em comum. Ele desejava categorias certas para cada coisa existente em cada ser existente no mundo. Mas atributos abstratos como o amor são difíceis de colocar em categorias. Dor, tristeza, medo em alma, medo mal em ilusão...
R. Liga, não, Anna. Assim é a vida. Por que você não substitui o brilho de Aristóteles que há nas imagens do seu deslembro por um outro brilho?
A. Mas eu não conheci Aristóteles, Riobaldo. E depois nunca fui apaixonada por ele. Certo é que não sei como era o brilho do seu olhar, o som de sua voz, os movimentos enquanto falava, como caminhava e quando dizia algo ou ficava em silêncio. Nem sei se adorava o silêncio ou não. Tudo que possuímos são palavras escritas, não é a mesma coisa que seria se eu tivesse dialogado com ele.
R. Num tô dizendo? Divago distorce a vida. Sem a presença real de uma pessoa, se baseando só no que ela disse/escreveu, num dá para ver quase nada. Quanta neblina em céu azul nunca visto. Quanta neblina, Anna. No sertão a gente aprende conversando de jagunço para jagunço. Essa coisa estranha de aprender sem falar com a pessoa de quem você aprende é já sem brilho desde o início. Em que mundo você viveu até aqui, Anna?
Viver assim é muito mais perigoso que no sertão, que já é do tamanho do mundo.
A. Nem sei Riobaldo. Mas não tive a mesma sorte de você, de viver de um jeito onde eu pudesse comparar divagações de sabença vivida de divagações de sabença aprendida.
R. Você fala dos divagos do deslembro, não? São eles que tornam o viver muito muito perigoso. Principalmente se os divagos forem de gente com quem você nunca conversou de verdade. Você e esse tal de Aristóteles nunca ficaram olhando para o mesmo céu ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto, no divago de uma mesma coisa e face-a-face. Viver assim é perigoso, Anna. Muito perigoso. Pode dar em perda do brilho da vida, que é maior talvez que perda do brilho do olhar do amor que amamos. Mas, ‘cê sabe, num gosto de julgar não. Acho que simpatizo mais com o Hume, aposto que com ele as coisas eram cara-a-cara, sem essa de se fazer presente no mundo com páginas escritas esvoaçando por aí como saem em giro as todas as cores das borboletas que no sertão a mesma raça de borboletas que em outras partes é trivial regular, cá cresce, vira muito maior, borboleta do sertão parece mesmo com gente que fala com outras sem ter ficado olho-no-olho, só no esvoaço. E a diferença, borboleta verdadeira tem passagem livre na travessia, será que tem travessia de vida nessas conversas suas com Aristóteles? Nonada, Anna. Sertão faz falta na sua travessia. ‘Inda num viu o que o mundo é.
.Você está me fazendo sentir medo em alma, Riobaldo. Desse jeito vou doar minha pequena biblioteca para você e ir regar buritis no sertão.
.Eu só não vou rir de você nem nada não, Anna, que em hora nenhuma, vez nenhuma, eu nunca tive vontade de rir de quem eu gosto senão eu ia rir mesmo porque no sertão num dá não de regar buritis. E num vou rir mais um vez porque buriti me traz lembro de saudade. Saudades, dessas que respondem ao vento. O remôo do vento nas palmas dos buritis todos, quando é ameaçado de tempestade. Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí, no intervalo, se pega o silêncio e põe no colo. Eu sou donde eu nasci. Sou de outros lugares. Meu lugar-outro nesse instante é que vento que é verde tocando buritis lembrou verde e silêncio dos olhos de Diadorim, tão rápida essa imagem que já cai na outra fantasiada pelo deslembro, que é do olhar como se fosse dum vento com todas as almas. Todas as almas nossas, sabe, Anna, cada uma que vem pelas imagens alteradas de lembro deslembro. Quando a gente dorme vira tudo: vira pedras, vira flor. O que sinto, e esforço em dizer a você Anna, repondo minhas lembranças, não consigo; por tanto é que refiro tudo nestas fantasias. Hoje eu sei. Dormi nos ventos. E Vento dá medo em alma não só quando ameaça de tempestade os buritis. Mas num carece de eu rir de idéia sua que vai na mente de largar o esvoaço de Aristóteles e ir regar buritis no sertão. Carece não Anna.
sandra & o segundo encontro com riobaldo tatarana