quinta-feira, novembro 18, 2004

"Notas do Subterrâneo"

Fragmentos de notas de um mundo particular
Dividido em dois
Dividido também em brevidade
Dividido em subterrâneos
Dividido na não-brevidade do silêncio
Necessário ser não-dividido
Algumas pessoas, entre as quais me incluo, sentem necessidade de escrever sobre qualquer coisa, tudo é passível de vir-a-ser um texto, de passar do vivido, sentido, observado, lido, pensado ou imaginado, para as palavras. Kant diria, é uma passagem do a posteriori para o a priori sem condições de possibilidade reais. Não sei a razão de recordar kant aqui, talvez pela obsessão em transpor um mundo vivido para outro formado de palavras, talvez seja algo que exija de nós um transcender para além do passado, embora transcender a finitude soe mais heideggeriano, mas isso não importa. O que importa nesse instante é que relendo antigos mundos transpostos para palavras percebi algo que na época não vi e mesmo tendo chegado ao ponto de escrever ainda assim não fui capaz de sentir minhas próprias palavras em meus sentimentos de então. Nessa época conheci um jovem filósofo, 'conheci' uma vontade imensa de fazê-lo feliz. Amar era isso, era simples, desejo de felicidade para Z. Desejar vê-lo flutuando na felicidade. Seria realmente amor?

Tive um sonho, deixaria que Z. me levasse para onde ele quisesse ir, iria junto, como se tivesse encontrado a porta para meu coração, uma porta que tantos buscaram e que eu mesma duvidara de sua existência. Ele abrira a porta de meu coração sem fazer nenhum esforço, isso fora leve, suave, pois fora simplesmente pelo seu “jeito” de ser, sua existência fora suficiente para tanto.
Pensei nas pessoas que faziam parte do mundo freqüentado por nós dois, pessoas sem nenhuma suavidade para com a ‘vida’, mas não pensava e não sentia a vida assim, suavidade não era pensar menos, incluía sentir mais. Não queria ter que ‘destruir’ isso. A explicação do professor de Filosofia da Ciência sobre um cético verdadeiro tirou-me dos pensamentos sobre filósofos suaves. Ouvi ele dizer, "o ceticista consequente vai se destruindo aos poucos, aos poucos, até se destruir completamente." Olhei ao redor e não consegui ver um verdadeiro cético, um que chegasse ao ponto de amar tanto uma idéia, a do próprio ceticismo, para chegar ao limite? Não, ali o limite era bem outro. Muitos, mas nada que pudesse depor contra algo que se referisse à própria vida ou antes disso, à vaidade. Não haveria nenhum cético conseqüente por aqui nos próximos anos. Um verdadeiro cético não teria medo de depor contra si caso fosse preciso. Respirou fundo, achou que estava respirando de forma equivocada. É tão fácil para quem está na filosofia acabar com sentimentos, tem tantas outras coisas que podem substituir as sensações, primeira lição ensinada na Academia, extirpar sensações suaves e não dizer ou escrever nada que deponha contra si próprio. Então, isso não seria uma forma de respirar contra si mesmo pensando não ser isso que realmente acontece? Sem querer aproximara suavidade com ceticistas consequentes.
O Anjo Elegante do Inferno não estava de preto hoje. É impressionante como algumas pessoas, raras, conseguem perceber um algo tão profundo em nossas almas tendo trocado poucas palavras. Diria que nunca alguém viu como sou em tão pouco tempo. Comentei com um colega e ele respondeu sorrindo: "sabe, Anna, os alemães não pintam o cabelo de vermelho, os franceses sim, as pessoas raras inventam de forma genial como Nietzsche." Sim, Nietzsche foi uma exceção, os alemães produzem poucas, eu acho. É possível mudar o que sentimos, isso é Nietzsche, embora seja tremendamente auto-destrutivo, uma substituição talvez seja sempre auto-destrutiva não importando que o algo destruído seja Bom ou Mau, ainda assim, destruição existencial. A sensação “subterrânea” de um olhar no fundo dos olhos, mania de observar?
Encontrei nesse olhar alguém que não é triste, mas um falso-deprimido que curte os abismos da alma humana pois já teve o seu abismo particular. Leio a orelha do livro que ele me emprestou: “uma vida subterrânea apela simultaneamente para nossos sentimentos e para nosso intelecto ao tecer um painel que nos coloca, perplexos e angustiados, diante da realidade material para então subordinar aos caprichos de um eu interior pleno de contradições e incertezas_ ... as quais conduzem a escuros subterrâneos de humilhação e degradação, não porque deles não consigam escapar, mas porque neles encontrem o perverso prazer de paradoxalmente se retemperarem através do sofrimento. A instabilidade emocional, que segundo Dostoievski, é inerente a todo e qualquer ser humano." O livro tem um cheiro estranho, uma mistura de páginas antigas com um suave perfume, muito suave, como se tivesse impregnado levemente o papel por ter ficado muito tempo entre as coisas particulares de uma única pessoa. Senti uma dor, um aperto quase físico no peito, um cheiro meio-reencontrado de sensações. Começava a discordar de Nietzsche, não é possível controlar sentimentos; pensamentos, possível desviá-los quando não trazem uma imagem que nos joga de volta a uma sensação não-empírica, nos faz viver "como se fosse". Como iria destruir a imagem de sua pele branca, do cabelo escuro, da magreza acentuada, da voz suave, das suas mãos, dos seus lábios? Ou dos traços de um rosto que mistura fragilidade e força?
Não sei se você curte divagações particulares... talvez todas sejam meio-subterrâneas, não é mesmo? Eu sabia que Nietzsche fora muito influenciado por Dostoievski, neste livro que você me emprestou muitas passagens me lembraram Nietzsche, o caos, a "autodestruição" como uma transvaloração dos valores, em palavras comuns, o sentido que colocamos nas coisas, nas pessoas, o valor que desejamos para a nossa existência, independente do estabelecido, do convencional, o niilismo e a vontade como totalidade de vida, a aceitação da contradição de nossa natureza entre sentir e pensar. Será o subterrâneo o extremo oposto da Montanha de Zara? Ou ir até o alto da Montanha significaria o próprio caminho para o "nosso" subterrâneo? Lá do alto, estranho não? Que precisaríamos ir "tão longe" para nos encontrarmos em sentimentos e pensamentos onde o esforço para negá-los chega a ser o sentido da própria vida, o tempo todo? às vezes toda uma vida para alguns ou para a maioria. Quando a gente se lê em partes de um livro como este, poderia ter sido em centenas de outros, com uma força narrativa tão forte como fazer para dar algum valor para universais durante uma manhã inteira?
Doses de uma boa realidade subterrânea. Oscilar entre as coisas talvez seja o que nos conduz por caminhos equivocados. Sensibilidade e razão. Eu penso que é mais fácil a escravidão dos pensamentos; pensamentos, é possível desviá-los_ sensações são mais complicadas. Quando a escrita passa pela sensibilidade acaba mesmo tornando a vida um lugar meio-subterrâneo, quando passa pela racionalidade este algo se “eleva” ao menos para se viver de forma mais tranqüila, sem demônios perturbando o ir-e-vir. Poucas pessoas conseguem conciliar coisas paradoxais, ele conseguia isso porque havia um ‘quê’ em seus traços do rosto, na expressão do olhos, uma mistura de fragilidade e força, um ar paradoxal natural. Escrever às vezes não alivia coisa alguma, só aumenta, como se as palavras depois de um tempo, completamente viciadas em nossa forma de pensar virassem “coisas” mais importantes do que a própria realidade. Amar o subterrâneo significa que cansamos de procurar uma beleza que não existe no mundo? Ou significa amar a própria natureza? Não dar as costas para si mesmo. Recebi uma fotografia em que um amigo caminhava de costas perto dos trilhos do metrô em Nova Iorque, atrás ele escrevera: ‘jamais darei as costas para você’. A imagem da foto era uma contradição do que ele escrevera para antecipar um comportamento que teria ou não teria? O que há entre sensações e viradas de costas? Nada demais: apenas um ar paradoxal, uma oscilação não-dita e não-escrita em meio a outras ditas e escritas. Inversamente, o dito contém a virada, só isso. Racional para falar e subterrâneo no silêncio, creio que nos ‘subterrâneos particulares” o silêncio seja algo por demais necessário.
Será que ele tinha lábios de gelo também?
Quando tentava pensar por ele lembrava das sessões de terapia de anos atrás e do pensamento que ficou: depois que se faz terapia vivemos uma mesma coisa muitas vezes ou pelo menos duas vezes: no empírico e no mínimo na análise do que se fez e não se deveria ter feito ou do que se deveria ter feito e não se fez. Hume já havia dito que os escritores _ ou filósofos_ falam sobre aquilo que não podem viver no empírico, eu diria que isso é o princípio para se começar a fazer literatura da vida real ainda que os sentimentos não sejam ficção.
Talvez todos naveguem de forma sofista em seus sentimentos pelo menos uma vez na vida. Primeiro a vacilação, depois a euforia, depois a revolta e por fim se acaba com o que se sente jogando para dentro dos pensamentos argumentos convincentes. De que, enfim, tudo que vale a pena é a filosofia, pois falamos com os mortos do jeito que se quer, com muitos sofismas ou nenhum. Como é difícil falar com os vivos. Como ser detetive de fantasmas. Que prazer, não? Quanta existência perfumada de nada. O resto do mundo é mais feliz, com certeza. Certezas?
Devo me perguntar por onde me levará este sentimento?
Percebi algo nessa madrugada solitária. Mas não importa. Não importa. Como que para quebrar a linearidade da vida ou do que eu via naquele instante, como tecer através do toque nos fios do cabelo uma outra possibilidade para aquele momento que nunca mais eu poderei repetir em sensações. Senti-me ridícula, tecer uma outra realidade no imaginário é dar uma outra versão para algo que já foi, não acredito num eterno retorno de uma mesma sensação, embora se dê o mesmo nome para elas, são ao mesmo tempo únicas se pensarmos no tempo que as envolve e que nos envolve,é quase como viver uma determinada circunstância e como se já fosse passado, pensar: já é meio-passado. Pode ser que um pensamento nada a ver atravesse o momento desviando possibilidades passadas num momento presente do pensamento para sensações que não existiram_ tem perda pior do que esta? Pensar para possuir coisas que não se possuiu, não se viveu, não se acredita que viveremos? Talvez Hume tenha razão, os escritores falam sobre aquilo que não podem viver no empírico, então fantasiam, criam, desviam a realidade, enfim, filosofam_ é como vivem.
Não gosto de me sentir observada, altera minha respiração, vai ver me senti observada por Dostoievski quando lia as Notas do Subterrâneo. Fixar os olhos para refletir suas próprias loucuras, que direito se tem? Não é desonesto isso? Direcionar o pensamento para outra pessoa e julgá-la, analisá-la, não seria como fechar os olhos sobre si mesmo? Falarei do outro para não falar de mim próprio. Pensarei no outro para não pensar em mim mesma. Viver para os outros para não viver a própria vida, para esquecer de si. Será que nos apaixonamos para podermos esquecer do que somos? O esquecimento em Heidegger talvez signifique também isso, já que a poesia sempre vem de sentimentos profundos que alguém tem o poder de despertar em nós. Assim, amar e escrever, para sermos nosso próprio esquecimento. Que doloroso se reconhecer num livro como este, poderia ter sido em qualquer outro, mas não, logo no que toca de forma mais degradante e sinistra é onde me reconheço sempre. Ouço Zeca Baleiro, “às vezes me preservo e outras suicido”. Preservar-se de esquisitices lítero-filosóficas. Dostoievski escreveu sem dúvida com o próprio sangue, pagou aquele preço alto do antes, antes de escrever, o existencial, da consciência de várias coisas que nos dão e nos tiram a vida. Olhar e pensar no depois? O que vem depois do depois? Por onde andará? “Pois toda esta beleza que te veste vem de meu coração que é teu espelho, meu bem, é bem melhor do que tudo posto.” Sim, por onde andará?
Como se fosse nossa pele passando de um espaço para outro sutilmente, levando e trazendo coisas, um fetiche que serviu de mediação para desejos guardados discretamente na ponta dos dedos, na vontade de tocar. Um papel flutuando entre desejos que se tenta manter por baixo de um jeito “nem aí”. A morte dos amantes no Espaço e no Tempo. Um livro é um fetiche estranho ao lado de um longo olhar de adeus. Como se para o adeus também precisássemos de um símbolo. Ainda que fosse ele a fechar portas de algum lugar em que eu nunca estive, um pouco de repouso ao anoitecer para me manter acordada até o amanhecer. Adiante disso um olhar e um espaço. Envolvê-lo em sedução para que o adeus adiante pertença ao amanhecer e o anoitecer apenas ao repouso de um longo olhar, um silencioso e longo olhar_ que não consigo esquecer, não é fetiche, não é ainda adeus. Nada disso. Apenas ele. Ele apenas.
seu olhar se move/ mas não posso sentir o que você pensa/seu rosto se vira/ mas não posso ver para onde seus pensamentos vão/ suas mãos se movem/ mas não posso saber o que elas tocarão em seguida/ seus passos não cessam/ mas não posso ver por onde andará/ todo esse desejo me segue/ mas não posso me mover_ “não posso ouvir o que você diz”.
Ando lendo uma porção de coisas diferentes, nem sei para onde me levarão (...) Parecia só teatro, mas seríamos ao mesmo tempo, suaves, doces e loucos. Pediu que eu prometesse que eu estaria com ele quando quisesse. A solidão sem a qual não consegue viver, "se me tirarem esse meu mundo eu morro." Eu apenas sorri. Ele me deu um beijo no canto da boca. Então, eu pedi que ligasse quando sentisse vontade e deixei uma observação no bilhete junto ao telefone: ... se e para quando achar que a tua solidão está “sem sentido”... você pediu brevidade o tempo todo, mas não foi isso que ouvi você repetir durante a noite, mas como nossas sensações nos enganam_ com sua brevidade própria_ eu posso estar enganada; talvez seja melhor se enganar do que destruir. Viu nos meus olhos a angústia, mas viu também que eu o queria e isso fez toda a diferença. O que você sente?_ ele perguntou ainda lá na mesa do bar. Eu: você me atrai e me assusta ao mesmo tempo. Ele: Eu te atraio e te repugno? Eu: Não. Ele: essa tua morbidez me atrai, ela é verdadeira? Então respondi: eu não sei... não sei... talvez a mesma morbidez que vejo em você e que me atrai e me assusta. Ao som de Animals, “você tem muita vida, embora a morbidez”. Jogar com fantasias. Zara, as mãos de um pianista tocando nas teclas pretas, ele que tocava os escritores malditos, o niilismo, filosofia, cigarros de creme, noites em claro e muito café ao som de Prokofiev, o músico que montou uma peça infantil onde cada personagem da história tem um tema que sempre é executado no mesmo instrumento, o pássaro é uma flauta trinando como o faria um pássaro assustado. Eu como um pássaro assustado mas que ainda pode voar, mas não sabe para onde, não tem vontade de voar sem rumo como antes, só desejava ir para um lugar, dormir abraçada, esquentaria minha pele na dele e deixaria que meu medo esfriasse ao lado ainda que na manhã seguinte tudo voltasse a ser como antes, ainda que quando acabasse a noite e eu precisasse soltar-me de seus braços, a lembrança dele aquecendo minha solidão e minha angústia, tornariam meu coração mais leve, acreditando que outras madrugadas estariam nos esperando para escutar Prokofiev e ouvi-lo ler Rimbaud em francês. O falar na morte e no mundo privado de se estar só, sem as máscaras. Disse que só quando eu aceitar completamente minha solidão é que .... por que você não aceita o que é? Eu aceito, já cansei de lutar contra isso, mas aceitar é também uma forma de resignação, por que não tinha o direito de ser suave? Sem a solidão dos pássaros assustados? Z. não respondeu, olhou para a mim, olhou para cima, viu o pássaro assustado sobrevoando muito perto, viu a flauta criando um som que embalaria quantos vôos fossem necessários, viu Rimbaud sentado no parapeito da janela e imaginou O Corvo de Poe numa versão de falso ressoar de asas.
O Corvo também era um pássaro, o corvo também era assustado?
Perguntei se ele já sentira o desejo de fazer uma mulher feliz. Ele: alegre? Eu: não, feliz mesmo, não importa que a felicidade não exista, eu falo de sentir essa vontade. Ele: não, nunca. E você? Eu: sim, há muito tempo atrás, um homem com cabelos e olhos cor de mel. Muitas horas depois ele perguntou: está feliz? Sim, eu estava muito feliz e foi isso que eu disse. Ele continuou perguntando várias vezes. Eu me perguntei em silêncio por que alguém que não acredita em felicidade perguntaria sobre uma felicidade que sequer era a sua? “Essa noite vai ficar na eternidade, essa noite será eterna.” Se essa noite era tão importante assim para ele desejar sua eternidade por que num sussurro ao perguntar se o para sempre existia e se essa noite era para sempre, por que então pedira pela brevidade do nosso amor? Mas nada falei, apenas pensei, não sei onde ou quando aprendi a ser tão silenciosa em instantes tão preciosos. Agora fica difícil de retornar. Somos breves, tanto quanto a vida, mais do que a própria vida, mas, no entanto, ainda somos, como o bater de asas. Adormeci perguntando a mim mesma: se a morte fosse breve pediríamos pela eternidade da vida? Ou por qualquer outra coisa? Condenados pelo vício como estávamos não dava para esperar grandes lembranças de minhas sensações e deduções desesperadas. Era eu que estava com o coração na área-limítrofe, mas ele não percebeu. Disse que eu era frágil, que nós dois éramos frágeis e que a fragilidade sorumbática estava apenas brincando com nossas fantasias como um pássaro que sobrevoa um lugar desconhecido e logo se afasta em direção a outro rumo.
Começar cedo... para cedo mudar o rumo começado.
sANdrA & o Anjo Elegante Maldito