terça-feira, junho 02, 2009

Parte V. "A distância entre a intenção e o gesto"

Eu acredito que exista algo na forma com que uma pessoa lembra que lhe concede a possibilidade de lembrar ou não de algo, se e quando precisar lembrar desse algo. Como um 'ponto cego' que deixa de ser 'ponto cego' no instante necessário. Ainda não sei como a minha forma de lembrar interliga suas 'sinapses', mas sei o quanto é curioso o fato de que eu lembro assim como se fosse um ‘flash’ de cenas vividas, flash que no momento lembrado espanta, não imaginei que lembraria. Esse ‘intervalo’ entre a cena e o momento 'aqui' em que lembro é tão repleto de outras vivências por de ter vindo junto com o movimento de vida, tantas coisas, pessoas, situações, leituras, escritos, sensações, percepções, mundo da vida, que se resolvermos pensar conscientemente sobre um fato, um dizer, a expressão de uma pessoa, talvez nos dê uma sensação angustiante da impossibilidade de termos nossas próprias lembranças disponíveis, num ‘flash’ de querer, de desejar determinada recordação_ porque existe muita Vida neste intervalo entre o agora e o antes. Então, decidi chamar a este 'intervalo' entre o algo a ser lembrado e o instante em que é lembrado de ‘a distância entre a intenção e o gesto de número cinco”. Explico (explico porque hoje estou numa fase explicativa-hipostasiada) a intenção de lembrar com clareza uma cena e o gesto de lembrá-la atravessam, às vezes, uma distância cronológica permeada por todas aquelas coisas que citei acima, a consciência aumenta a distância de cronológica para uma distância metafísica. E tudo que se torna metafísico para nós assume instantaneamente palavras que dizem: nunca vais saber o que desejas, a impossibilidade de ver o que queres. Por isso, as lembranças repentinas, as que vêm por 'flash' são mais confiáveis, existe nelas um pensamento a dizer: se elas vieram assim de repente então elas existiram exatamente como estão sendo lembradas. Parece confortável e aliviante, mas não é sempre assim, penso, do contrário haveria uma maior concordância entre duas pessoas que lembrassem juntas uma mesma cena, diálogo, fato. Não é o que acontece. Por outro viés, quem pensa por imagens corre maior risco de se ver emaranhado em partes de lembranças que não estavam lá, é a necessidade de preencher espaços vazios para dar linearidade e totalidade a uma cena lembrada como se fosse uma narrativa literária. Por isso amo os surrealistas, eles entendiam muito do movimento de rememorar a vida, com certeza, eram mestres no assunto e não acreditavam na possibilidade de uma linearidade literária que não existe sequer nas lembranças. Alguns chamam a esta espécie de recordantes por imagens (aqueles que recordam, sim?) de loucos, imaginativos, dissociados da realidade, andarilhos no pensar, simbolistas tardios, dependendo da idade, sobram outras tantas adjetivações.
* (como estou eu sendo minha melhor 'experiência', até porque jamais vou ter a graça de poder pensar por imagens no lugar de outro ser humano, preciso me contentar em ser meu próprio laboratório, e com isso, tristemente percebo o querer de estar inteiramente no pensamento de outra pessoa, haveria algo mais metafísico do que isso?, creio que não, enfim...)
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Minha melhor lembrança vem por 'flash', a lembrança-repentina, como se fosse uma lembrança-intuitiva. Você por alguma razão necessita ‘vê-la’ de novo em seus pensamentos, por algum motivo ela se tornou muito importante, e suas sinapses sabendo disso vão buscá-la e a trazem de volta e te mostram a ela, sim, te mostram à lembrança. E uma cena encantadora lembrada explica algumas coisas de maneiras possíveis. E com isso vem o instante posterior àquele que trouxe de volta em imagens, com sorte, também com as palavras trocadas, um diálogo rápido em frente a um elevador, um dar passagem olhando com encanto, assume uma distância aterrorizante: mas então, então era para ser assim?, desse jeito?, o intervalo (a distância) entre a intenção (de vida) e o gesto (de não-vida, já que não houve e que poderia ter se dado). Era para ser dessa forma? O 'flash' tem sempre luminosidade?
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Uma sensação de engano. Como ele pôde não ter dito nada, além de uma frase corriqueira em frente a um elevador numa tarde de sol em setembro? E ir embora tão calmamente, tão tranqüilo porque decidiu que era assim que deveria ser.
Uma vivência breve, na hora apenas me despertou encanto e que deixou um rastro de algo por explicar. Minha memória depois da fase 'flash' lembra muito mais e bem melhor o que me acontece estranhamente e não teve, no instante vivido, uma explicação plausível. Tudo que me é explicado no momento vivido não terá para mim qualquer distância a ser percorrida pelas 'sinapses' para que um dia eu as deseje de volta. Minhas sinapses acrescentaram espanto. Uma certa incredu(a)lidade diante da vida. Eu recordo com mais vida o que ficou sem explicação. Minha melhor memória é insistente em explicar, deve ter sido a filosofia que me viciou assim com esta obstinação de várias adjetivações, só pode ser.
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Os perigosos 'flash' que nos atravessam com suas luzes intensas. As cenas vividas que ficam só aguardando o dia da completude explicativa vêm através deles. E aqui penso que caberia a fala do filósofo Marcos Müller sobre Merleau-Ponty. Se encontrá-la transcreverei em 'mar d'água' a sua ideia sobre completudes tardias. Agora, para finalizar, como meu norte literário tem sido o Blog do Marcelo Rubens Paiva, termino citando um belíssimo parágrafo do Marcelo: "Escrever cansa. Fotografar é quase uma brincadeira. É um registro da vida dos outros. Como literatura. Sem esforço de memória. Mas com flash ou sem. E pessoas passando na frente." Marcelo e o querer-ser-fotógrafo, eu também, eu também, Marcelo, tanto para me cansar menos como por outro motivo: eu me fascinaria por simulacrar algumas cenas vividas, com a imagem 'congelada' quadro-a-quadro, com 'balãozinho' para o diálogo e tudo o mais: então eu possuíria memória-em-HQ, e me pensaria por imagens de uma maneira bem fidedigna. A pior finitude só pode ser esta: o vivido depende do lembrar! Com o tempo a distância é tão intransponível, são tantos os 'gestos' que somos e não-somos, acabam por carregar junto dentro do 'intervalo' uma infinidade de "pessoas passando na frente" e que contribuem para desfocar nossa visão. Será por esta razão que Merleau-Ponty falava na 'dupla visão' ou 'vista dupla'?
Para ver além da multidão de pessoas que passam pela frente é necessário ter 'dupla vista'? (os fotógrafos a possuem)
*sandra, voltando para as imagens. mas que obstinada por este assunto!

Parte IV. "A distância entre a intenção e o gesto"

Embora meu amor e meu ceticismo pelo que as palavras possam significar em nossas vidas, admito que o lado quase 'sagrado' com que elas nos dão algumas coisas se assemelham muito com imagens, de um jeito ou de outro as palavras nos permitem trazer de volta cenas do passado, elas vêm junto com a cena, claro que sim (ou não?), ou a cena vem primeiro e depois a linguagem formal?, ou é esta que surge a princípio para depois ressurgir a cena? Eu não sei. Tu o sabes? Em todos os 'acasos', palavras & imagens me fascinam. Penso nisso há anos. E sou a minha melhor 'experiência'.
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Lembrar. Recordar. Trazer algo de volta do passado ao presente.
Re_apresentar em forma de linguagem e imagens (uma cena vivida, por exemplo) num tempo distante do acontecido. Pode ser de um tempo bem próximo também. Pode ser recordação de alguns minutos atrás. De muitos e muitos anos. Ou de átimos. Qual seria o rememorar mais fidedigno?
Re_apresentar lá na frente o que acontece agora, e aqui seria uma antecipação de uma possível reminiscência. Recordar o tempo perdido. Lembrar no instante seguinte. Re_lembrar de uma forma ou outra. Tudo isso é para mim memória ou pelo menos o que a atravessa. Ou parte dela ou o que tem travessia em parte. Eis, consegui sintetizar o que eu penso sobre o assunto e não foi com leituras de Merleau-Ponty nem Bergson, eu só lembrei de uma cena brevíssima e tudo ficou tão claro. E senti uma profunda vontade de saber se a memória (e não as lembranças) tem uma cor clara. Qual é a cor da memória de cada um?
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A distância entre a intenção de lembrar e o instante em que se lembra é de que tamanho? Eu acho que é do tamanho do temperamento de nossas sinapses. Assim, eu jogo tudo para cima de meu tempo interno e não tenho que explicar distâncias ou não-distâncias. É que existem certos tipos de lembranças que vêm com uma dedução, tardia, é certo, mas penso que a menor distância é justamente a que nos faz 'ver. Que pode ser assim: o 'ver' assume o movimento de vida logo depois do gesto. Não importa que seja 'tardia', afinal os silogismos também o são.
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Algumas pessoas possuem memória-em-movimento-de-silogismos com um passado em premissas e conclusões que aterrorizam. Algumas pessoas possuem memória-em-movimento-de-vampirização com um passado que vive a sangrar o que já houve, as conclusões, normalmente, não são nada fleumáticas. Algumas pessoas possuem memória-em-suavidade com um passado bem mais atenuado pelas conclusões harmoniosas, são os minimalistas da memória. Algumas pessoas possuem memória-de-baladas com um passado que vive só das andanças noturnas, suas conclusões em geral são regadas etilicamente, são os de ar blasé, para estes lembrar não pode estar associado a um cotidiano sem glamour, possuem passado-em-cena. Morreriam sem este teatro de si mesmos. Algumas pessoas não lembram, não gostam de lembrar, não vivem no passado, não precisam disso, elas estão no presente e daí para o presente de novo. Não são atormentadas, o passado não é uma tempestade, apenas mais uma estação que mudou. Algumas pessoas possuem memória-em-hipostasia, e de algo insignificante conseguem passam a forte impressão de que tudo tudo foi intenso. A lista iria ao infinito.
Não estou com vontade de realizar ilações sobre memórias outras. Minha lista vai ao que é finito. Bem finito.
* sandra, para os que lembram que lembrar existe.

Como ele pôde ficar sem voz?


“Como ele pôde ficar sem voz?”
Cena: Ela chega na recepção do prédio. O recepcionista pergunta, “seu nome, por favor?” S., responde ela. “Aguarde um instante”, pede o recepcionista e em seguida faz uma ligação para uma pessoa que provavelmente está em algum andar do prédio. “Ela está subindo, Sr.” Em seguida diz à moça: “Senhorita, suba pelo elevador da esquerda”. Ela não estranha. Se tem que subir pelo elevador da esquerda que seja. Caminha até lá e aperta o botão: do elevador da esquerda! Ele para, a porta abre, ela fica olhando com uma sensação de encanto inexplicável e ‘dá passagem’ para o Sr. desconhecido que a cumprimenta com um ‘oi’ meio fixo. A expressão dele é encantadora. Não sabe se é sempre assim ou se ele teve alguma lembrança ao olhar para ela e assim ficou. São dois desconhecidos? Talvez sim. Talvez não. Talvez haja um desconhecimento somente para um deles. Mas ela nada sabe, acredita estar num simples momento do cotidiano. Trocam algumas frases rápidas sobre isso mesmo, o cotidiano em elevadores. “A porta fechou e o elevador subiu novamente, me desculpe”, diz ele. “Não tem importância”, sorri ela. Tchau de um lado, tchau de outro.
*
Ele se dirige para a porta do prédio. O recepcionista pergunta, “Mas então encontrou a pessoa que esperava?” Responde ele: “Sim, encontrei.” “E não vai falar com ela?”, interroga ainda o recepcionista.
“Não, não vou falar com ela.” Responde calmamente enquanto vai embora.
*
Ela só ouviu o diálogo porque o elevador subiu antes da hora, ela só lembra dessa cena porque pareceu surreal uma sensação de encanto bem no meio do cotidiano. Ele só foi embora porque ficou sem voz. Ele só ficou sem voz porque uma ‘vozinha’ lá dentro disse-lhe: “lembra daquela outra vez?, o que foi que aconteceu?”
*
As sinapses estão sempre conspirando a favor da liberdade. Assim, ele partiu.
*
Assim ela relembra. Dos encantos trincados pelos humores de nossas sinapses.
sandra & uma cena-exemplo como transição para o próximo post: "a distância entre intenção e gesto, parte IV".