Parte V. "A distância entre a intenção e o gesto"
Eu acredito que exista algo na forma com que uma pessoa lembra que lhe concede a possibilidade de lembrar ou não de algo, se e quando precisar lembrar desse algo. Como um 'ponto cego' que deixa de ser 'ponto cego' no instante necessário. Ainda não sei como a minha forma de lembrar interliga suas 'sinapses', mas sei o quanto é curioso o fato de que eu lembro assim como se fosse um ‘flash’ de cenas vividas, flash que no momento lembrado espanta, não imaginei que lembraria. Esse ‘intervalo’ entre a cena e o momento 'aqui' em que lembro é tão repleto de outras vivências por de ter vindo junto com o movimento de vida, tantas coisas, pessoas, situações, leituras, escritos, sensações, percepções, mundo da vida, que se resolvermos pensar conscientemente sobre um fato, um dizer, a expressão de uma pessoa, talvez nos dê uma sensação angustiante da impossibilidade de termos nossas próprias lembranças disponíveis, num ‘flash’ de querer, de desejar determinada recordação_ porque existe muita Vida neste intervalo entre o agora e o antes. Então, decidi chamar a este 'intervalo' entre o algo a ser lembrado e o instante em que é lembrado de ‘a distância entre a intenção e o gesto de número cinco”. Explico (explico porque hoje estou numa fase explicativa-hipostasiada) a intenção de lembrar com clareza uma cena e o gesto de lembrá-la atravessam, às vezes, uma distância cronológica permeada por todas aquelas coisas que citei acima, a consciência aumenta a distância de cronológica para uma distância metafísica. E tudo que se torna metafísico para nós assume instantaneamente palavras que dizem: nunca vais saber o que desejas, a impossibilidade de ver o que queres. Por isso, as lembranças repentinas, as que vêm por 'flash' são mais confiáveis, existe nelas um pensamento a dizer: se elas vieram assim de repente então elas existiram exatamente como estão sendo lembradas. Parece confortável e aliviante, mas não é sempre assim, penso, do contrário haveria uma maior concordância entre duas pessoas que lembrassem juntas uma mesma cena, diálogo, fato. Não é o que acontece. Por outro viés, quem pensa por imagens corre maior risco de se ver emaranhado em partes de lembranças que não estavam lá, é a necessidade de preencher espaços vazios para dar linearidade e totalidade a uma cena lembrada como se fosse uma narrativa literária. Por isso amo os surrealistas, eles entendiam muito do movimento de rememorar a vida, com certeza, eram mestres no assunto e não acreditavam na possibilidade de uma linearidade literária que não existe sequer nas lembranças. Alguns chamam a esta espécie de recordantes por imagens (aqueles que recordam, sim?) de loucos, imaginativos, dissociados da realidade, andarilhos no pensar, simbolistas tardios, dependendo da idade, sobram outras tantas adjetivações.
* (como estou eu sendo minha melhor 'experiência', até porque jamais vou ter a graça de poder pensar por imagens no lugar de outro ser humano, preciso me contentar em ser meu próprio laboratório, e com isso, tristemente percebo o querer de estar inteiramente no pensamento de outra pessoa, haveria algo mais metafísico do que isso?, creio que não, enfim...)
*
*
Minha melhor lembrança vem por 'flash', a lembrança-repentina, como se fosse uma lembrança-intuitiva. Você por alguma razão necessita ‘vê-la’ de novo em seus pensamentos, por algum motivo ela se tornou muito importante, e suas sinapses sabendo disso vão buscá-la e a trazem de volta e te mostram a ela, sim, te mostram à lembrança. E uma cena encantadora lembrada explica algumas coisas de maneiras possíveis. E com isso vem o instante posterior àquele que trouxe de volta em imagens, com sorte, também com as palavras trocadas, um diálogo rápido em frente a um elevador, um dar passagem olhando com encanto, assume uma distância aterrorizante: mas então, então era para ser assim?, desse jeito?, o intervalo (a distância) entre a intenção (de vida) e o gesto (de não-vida, já que não houve e que poderia ter se dado). Era para ser dessa forma? O 'flash' tem sempre luminosidade?
*
Uma sensação de engano. Como ele pôde não ter dito nada, além de uma frase corriqueira em frente a um elevador numa tarde de sol em setembro? E ir embora tão calmamente, tão tranqüilo porque decidiu que era assim que deveria ser. Uma vivência breve, na hora apenas me despertou encanto e que deixou um rastro de algo por explicar. Minha memória depois da fase 'flash' lembra muito mais e bem melhor o que me acontece estranhamente e não teve, no instante vivido, uma explicação plausível. Tudo que me é explicado no momento vivido não terá para mim qualquer distância a ser percorrida pelas 'sinapses' para que um dia eu as deseje de volta. Minhas sinapses acrescentaram espanto. Uma certa incredu(a)lidade diante da vida. Eu recordo com mais vida o que ficou sem explicação. Minha melhor memória é insistente em explicar, deve ter sido a filosofia que me viciou assim com esta obstinação de várias adjetivações, só pode ser.
*
Uma sensação de engano. Como ele pôde não ter dito nada, além de uma frase corriqueira em frente a um elevador numa tarde de sol em setembro? E ir embora tão calmamente, tão tranqüilo porque decidiu que era assim que deveria ser. Uma vivência breve, na hora apenas me despertou encanto e que deixou um rastro de algo por explicar. Minha memória depois da fase 'flash' lembra muito mais e bem melhor o que me acontece estranhamente e não teve, no instante vivido, uma explicação plausível. Tudo que me é explicado no momento vivido não terá para mim qualquer distância a ser percorrida pelas 'sinapses' para que um dia eu as deseje de volta. Minhas sinapses acrescentaram espanto. Uma certa incredu(a)lidade diante da vida. Eu recordo com mais vida o que ficou sem explicação. Minha melhor memória é insistente em explicar, deve ter sido a filosofia que me viciou assim com esta obstinação de várias adjetivações, só pode ser.
*
Os perigosos 'flash' que nos atravessam com suas luzes intensas. As cenas vividas que ficam só aguardando o dia da completude explicativa vêm através deles. E aqui penso que caberia a fala do filósofo Marcos Müller sobre Merleau-Ponty. Se encontrá-la transcreverei em 'mar d'água' a sua ideia sobre completudes tardias. Agora, para finalizar, como meu norte literário tem sido o Blog do Marcelo Rubens Paiva, termino citando um belíssimo parágrafo do Marcelo: "Escrever cansa. Fotografar é quase uma brincadeira. É um registro da vida dos outros. Como literatura. Sem esforço de memória. Mas com flash ou sem. E pessoas passando na frente." Marcelo e o querer-ser-fotógrafo, eu também, eu também, Marcelo, tanto para me cansar menos como por outro motivo: eu me fascinaria por simulacrar algumas cenas vividas, com a imagem 'congelada' quadro-a-quadro, com 'balãozinho' para o diálogo e tudo o mais: então eu possuíria memória-em-HQ, e me pensaria por imagens de uma maneira bem fidedigna. A pior finitude só pode ser esta: o vivido depende do lembrar! Com o tempo a distância é tão intransponível, são tantos os 'gestos' que somos e não-somos, acabam por carregar junto dentro do 'intervalo' uma infinidade de "pessoas passando na frente" e que contribuem para desfocar nossa visão. Será por esta razão que Merleau-Ponty falava na 'dupla visão' ou 'vista dupla'?
Para ver além da multidão de pessoas que passam pela frente é necessário ter 'dupla vista'? (os fotógrafos a possuem)
*sandra, voltando para as imagens. mas que obstinada por este assunto!